Os interesses do capital imobiliário e a omissão do Poder Público fazem com que o planejamento urbano seja relegado a um segundo plano, enquanto o direito à moradia é negado a uma boa parte da população
Por Adriana Delorenzo, Gisele Brito e Glauco Faria
“Ninguém esperava que o local onde foi fundado o Jardim Edith, antes do início dos anos 1970, seria, um dia, uma das áreas mais disputadas da cidade.” A reflexão é de Gerôncio Henrique Neto, 69 anos, líder comunitário de uma favela que foi demolida por conta da Operação Urbana Água Espraiada, na zona Sul de São Paulo. As casas modestas, na maioria de alvenaria, ficavam em uma das áreas que, no início da ocupação, em 1973, estava longe de ser o que hoje é uma das áreas mais valorizadas da capital paulista.
Nos anos 1990, o local, antes indesejado e destinado aos pobres, se transformou em uma das mais valorizadas áreas da capital paulista. A região entre a Avenida Berrini e a Marginal Pinheiros fez parte da expansão econômica da cidade para o chamado vetor sudoeste, que abriga atividades do setor terciário de elevado capital. Maciços investimentos foram feitos para melhorar a infraestrutura, como a construção do complexo Ayrton Senna, dos túneis Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Jânio Quadros e da Avenida Águas Espraiadas, na gestão Paulo Maluf (1993-1996). Mas as pessoas que moravam ali não foram, em nenhum momento, prioridade.
A urbanista Mariana Fix descreve no livro Parceiros da Exclusão (Boitempo Editorial) como quase todas as moradias foram destruídas na área em que Gerôncio, um dos 12 mil moradores que o Jardim Edith chegou a ter em 1995, se instalou. Além de inúmeras irregularidades no processo de remoção, parte dos antigos moradores foi parar em áreas de mananciais (muitas vezes com incentivo de agentes do Poder Público e de construtoras) como a da represa Billings, onde se ergueu o Jardim Edith II, em uma antiga ocupação clandestina. O cenário em 1996 era desolador: “Com as casas alagadas, tapumes de madeira faziam o papel de ponte e as crianças passeavam com água pela cintura”, detalha a urbanista.
A formação de novos centros financeiros, que ignoram direitos básicos das maiorias dos cidadãos, como no exemplo já aqui descrito, mostram um perverso processo que envolve o capital imobiliário e parte do Poder Público como sócios na construção de uma cidade segregada, fenômeno que não se restringe apenas a São Paulo. E é uma segregação que se torna mais evidente na medida em que as terras disponíveis para a construção de empreendimentos imobiliários ficam escassas. Nessa corrida em busca do novo ouro do mercado, lotes que antes abrigavam famílias de baixa renda têm sido requeridos judicialmente, e as decisões sempre tendem para o lado do proprietário, mesmo que ele seja inadimplente com tributos ou que sua propriedade não cumpra a função social preconizada pela Constituição Federal. O caso da violenta reintegração de posse realizada no Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), foi emblemático nesse sentido. Retiraram-se os cerca de 9 mil moradores, que lá moravam desde 2004, para devolver a terra ao seu dono, a massa falida da empresa de Naji Nahas.
“O Estado brasileiro é patrimonialista, o Raimundo Faoro já mostrou isso e a Erminia [Maricato] vem chamando a atenção para esse fato há muitos anos. Ele legitima quem tem patrimônio e, principalmente, quem tem patrimônio fundiário, quem tem terra. Os donos do poder e os donos da terra são os mesmos”, analisa Kazuo Nakano, urbanista do Instituto Pólis. “Diante disso, como fazer com que o Estado regule a terra em prol do interesse público, se vai atingir interesses privados? E existe a lógica eleitoral. Quem financia a campanha a vereador, prefeito, deputado, governador, presidente da República? Desde os anos 1960, são as grandes empreiteiras, que dependem de obras públicas; hoje, é o mercado imobiliário formal, os órgãos das incorporadoras, são as empresas de ônibus, as empresas de lixo. Esses caras financiam as campanhas e, quando o candidato ganha, já assume amarrado.”
O processo de reprodução de cidades desiguais, no qual cada vez mais as pessoas com menor renda vão para as áreas mais distantes dos centros, tem se intensificado no Brasil, indo além das grandes metrópoles, onde a desigualdade se faz mais visível. “Metade da população brasileira mora na informalidade, 20% em favelas. E as pequenas e médias cidades do País estão reproduzindo exatamente o mesmo modelo”, diz João Sette Whitaker Ferreira, coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), e autor do livro O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (Ed. Vozes).
Para Whitaker, há uma relação estreita entre a ação do Poder Público no espaço urbano e o aprofundamento das desigualdades. “Em qualquer cidade capitalista, o preço fundiário e imobiliário é decorrente do valor de localização, que é constituído pela infraestrutura urbana que ele abriga – mobilidade, saneamento e etc. –, que fazem com que um lugar seja mais urbano em relação aos outros”, explica. “A contradição é que quem produz a infraestrutura que faz aumentar o preço da terra é o Estado, é resultado de investimento social, público. E esse investimento público que gera valorização é apropriado individualmente, no que é chamado de mais-valia urbana. Apropriado pelo sujeito que tem dinheiro, pelas elites.”
“Terra urbana é uma riqueza social produzida coletivamente”, explica Nakano. “Quando um grupo minoritário se apropria disso sem dar nada de qualidade em troca, há o ganho especulativo”, diz ele, que defende regulação para evitar que a terra esteja quase que exclusivamente a serviço da especulação imobiliária. “Mas, no Brasil, a gente nunca conseguiu isso [regulação], porque nossa urbanização sempre foi conduzida pelo mercado de terras, seja o formal ou o informal. Essa forma de urbanização que a gente tem no Brasil, conduzida pelo mercado e com grande omissão do Poder Público, fez com que a especulação da terra fosse prevalente e estruturante nas nossas cidades.”
O crescimento econômico e o capital imobiliário
Hoje, diversos municípios do Brasil experimentam um boom imobiliário, com os preços do metro quadrado, seja para alugar ou comprar, subindo muito acima da inflação e também em comparação com outros bens. Em São Paulo, por exemplo, o custo do metro quadrado de imóveis teve alta de 26,4% nos últimos 12 meses, conforme o índice FipeZap. Além dos movimentos especulativos, o crescimento econômico também tem relação com esse quadro.
“A expansão econômica tem um lado positivo, mas tem um lado negativo para a gestão urbana”, explica Vladimir Fernandes Maciel, economista especializado em Economia Regional e Urbana da Universidade Mackenzie. Assim como Whitaker Ferreira, ele ressalta que, atualmente, cidades pequenas e médias, que não passaram pelo ciclo de urbanização como as grandes em meados dos anos 1950, vivem uma expansão urbana acelerada. Maciel acredita que “estamos multiplicando o caos, que, antes, era concentrado nas grandes cidades”. “A desigualdade vai se perpetuando. É como se essas cidades olhassem para São Paulo, Rio de Janeiro e outras e dissessem ‘eu serei vocês amanhã’”, comenta.
O economista destaca o processo de expansão urbana que vem ocorrendo no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Diversas cidades estão se orientando conforme investimentos públicos feitos em logística, energia, portos e indústrias. “Elas repetem o histórico: migração em função da criação de canteiros de obras, que geram empregos. Mas a cidade não dá conta de atender a todas essas pessoas. São cidades sem infraestrutura e saneamento e com transporte e habitação precários”, explica. “Com a migração acelerada e baixos estoques de terra, a população mais pobre é jogada para áreas inadequadas, em habitações precárias.”
Mas a expansão desordenada das cidades não pode ser debitada apenas na conta do crescimento econômico. Outro fator crucial é o fato de as administrações públicas praticamente abrirem mão do planejamento em troca das inúmeras concessões feitas ao mercado imobiliário, que acaba de fato sendo o responsável pelo arranjo urbano. No caso de São Paulo, leis de zoneamento chegam a ser modificadas para que novas edificações sejam construídas e comercializadas. Em dezembro, a Câmara Municipal aprovou o Projeto de Lei 425/11, do prefeito Gilberto Kassab (PSD), que permite à administração emitir 500 mil Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) [hiperlink: Com os Cepacs, as construtoras podem fazer prédios acima dos limites estipulados para a região pelo zoneamento urbano] na Operação Urbana Faria Lima, na região de Pinheiros. Ou seja, no chamado vetor sudoeste da capital.
“Aquela região [Pinheiros] é a que mais concentrou recursos da operação urbana na gestão Maluf, às custas de muito investimento público se tornou o filé-mignon. Água Espraiada é a mesma coisa, foram bilhões. É a maneira de continuar financiando essa aparente modernidade”, sustenta Mariana Fix, também autora de Cidade Global – Fundamentos Financeiros de uma Miragem (Boitempo Editorial), que ressalta como esse deslocamento de centralidades em São Paulo e em outros lugares se insere nas ações realizadas por um mercado imobiliário concentrado, usando-se o instrumento das operações urbanas. “Essas operações começam no início dos anos 1990 e, desde então, são apresentadas como modelos em outras cidades. Mesmo aquelas sem mercado implantavam a operação urbana, uma espécie de fórmula mágica”, detalha. “É uma maneira encontrada por governos que não dão conta de fazer um planejamento mais amplo, usando o apelo de que a operação vai ser financiada pelo setor privado. Só que a prefeitura se torna um agente que tem como função desbloquear a entrada do mercado imobiliário. Se tem favela, vai expulsar; se tem terrenos muito pequenos, vai agir no que for necessário para que uma dinâmica imobiliária seja iniciada.”
Além das operações urbanas, outras transformações importantes fizeram com que o panorama urbano fosse modificado em função de interesses privados. A financeirização da economia, a internacionalização do setor imobiliário e a abertura do capital de empreendedoras na bolsa de valores modificaram o perfil do mercado, especialmente em São Paulo. “A abertura de capital na bolsa de valores, ocorrida entre 2005 e 2007, trouxe uma grande quantidade de recursos para empresas que mantinham sua atividade concentrada na região Sudeste. Podemos dizer que foi uma captação de recursos bastante considerável. O que essas empresas conseguiram captar no ano de 2007 significou praticamente o que a poupança estava destinando ao crédito habitacional”, argumenta o geógrafo Sávio Augusto de Freitas Miele. Segundo ele, os IPOs (oferta pública de ações, sigla em inglês) tiveram um impacto considerável nos mercados das grandes cidades, pois a quantidade de novos lançamentos e a compra de terrenos para formação de land banks ou “bancos de terrenos” estava atrelada à necessidade de gerar resultados aos investidores.
A partir daquele momento, como não estavam claros quais os critérios que o mercado utilizaria para investir nas empresas do ramo, o primeiro parâmetro que as próprias empresas passaram a oferecer como maneira de mostrar solidez foi o banco de terrenos. “Então, tínhamos empresas capitalizadas e com um banco de terrenos para se construir, e o ritmo de crescimento foi grande”, relata Miele. “Outro momento importante, resultado desse processo, foi o que podemos chamar de expansão regional, ou seja, quando as empresas do Sudeste começaram a ter investimentos em outras capitais do Sul, Norte/Nordeste, Centro-Oeste, quando só o mercado de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais não sustentariam as necessidades de resultados que elas precisavam. Essas incursões foram feitas por meio de parcerias com empresas locais, muitas vezes sem cautela, trazendo dificuldades para algumas grandes empresas.” Foi nessa fase, graças à captação de recursos por meio da abertura de capital na bolsa, que ocorreram as fusões e compra e venda de empresas, com a presença de grandes fundos internacionais.
A questão da habitação
Alguns dados mostram como a especulação imobiliária no Brasil constitui, na prática, um problema social. De acordo com o Censo de 2010, realizado pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE), o número de domicílios vagos no país é maior que o déficit habitacional, já se excluindo dessa conta residências de ocupação ocasional ou casas em que os moradores estavam ausentes de forma temporária. No país, há 6,07 milhões de domicílios vagos, o que superaria em mais de 200 mil o número de habitações que precisariam ser construídas para famílias que não residem hoje em locais considerados adequados: 5,8 milhões.
“O direito à propriedade é considerado como absoluto, mas só vai até o ponto em que ela [propriedade] cumpre a função social”, lembra Mariana Fix. Existe um arcabouço legal que regulamenta a questão, vinculando-o aos planos diretores e à função do terreno em determinadas regiões da cidade. Há instrumentos como o IPTU progressivo e o direito de preempção, que também consta no Estatuto das Cidades, e confere, em determinadas situações, a preferência ao Poder Público para comprar um imóvel que esteja sendo vendido pelo proprietário a outra pessoa. Ainda assim, o direito à propriedade é tido pela sociedade em geral (e até mesmo por quem não tem posse alguma) como quase intocável.
Essa noção de “propriedade inviolável” também se relaciona ao anseio pela casa própria, ignorando-se ou subestimando outras formas de moradia. Mariana Fix analisa como essa ideia se tornou parte do chamado “sonho americano”. “Nos EUA, até os anos 1920, 1930 não era assim. Houve uma série de campanhas feitas pelos agentes do mercado imobiliário para que as pessoas passassem a almejar a casa própria, associando-a à felicidade. Foi realizada uma campanha de marketing, junto com a promoção do sistema de hipotecas para moradia, e a população acabou sendo convencida dessa alternativa.” De acordo com Fix, campanhas nacionais da época propagavam a ideologia da casa própria e combatiam alternativas como a habitação multifamiliar e conjuntos habitacionais que fossem produzidos pelo Estado. Tal ideal passaria a dominar o discurso dos dois principais partidos estadunidenses, o Democrata e o Republicano. “Depois, isso constitui um traço cultural, mas tem a ver com a falta de uma política pública de aluguel, como acontece em alguns países da Europa, e de concessão de uso.”
A cultura da casa própria também passou a fazer parte do ideário brasileiro, que tem uma trajetória de exclusão e violência na área de Habitação. “No Brasil, a primeira moradia do trabalhador recém-liberto foram os cortiços, ele passa a morar na ilegalidade, ser expulso, como no emblemático caso Cabeça de Porco, no Rio de Janeiro, em 1893. E, depois, tem o surgimento das favelas, sempre refletindo uma situação de muita insegurança para os moradores, ou seja, existe um lastro, um problema real para que se coloque a questão da casa própria.”
O próprio Estado passou a adotar como modelo e única opção de política pública a oferta da casa própria, durante o regime militar, que pretendia resguardar a estabilidade social e a ordem. A esse respeito, Fix lembra uma declaração do então ministro do Planejamento Roberto Campos, quando da instituição do Banco Nacional de Habitação (BNH). “O proprietário da casa própria pensa duas vezes antes de se meter em arruaças ou depredar propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem”, dizia Campos. “O BNH é uma política pública, uma maneira de acesso à cidade legal que implica uma garantia para o morador de não ser expulso. O [sociólogo] Boaventura de Sousa Santos comenta que a legalidade em relação à posse da terra repercute sobre todas as relações sociais, já que o morador ilegal tem a dificuldade do endereço, de crédito etc. A propriedade legal de um imóvel é uma maneira de estar inserido no sistema econômico.”
Desde essa experiência do BNH, o governo federal havia se ausentado da função de elaborar políticas públicas de amplo alcance na área de Habitação, o que se alterou com a instituição do Minha Casa, Minha Vida, em 2009. “Compreende-se que a população queira a casa própria, mas o Minha Casa, Minha Vida é um reforço à ideologia da casa própria, fechando as portas para outras alternativas. Esse é um tipo de solução de mercado convencional”, acredita Mariana Fix. O programa foi instituído após a crise econômico-financeira de 2008/2009 e era uma ação que se inseria em uma série de medidas de caráter anticíclico do governo, com objetivos que iam além da questão habitacional, como a geração de empregos. Mas foi uma grande oportunidade para as empresas do setor imobiliário ao incorporar pessoas que antes estavam fora do circuito de compra e venda de imóveis. “Algumas dessas construtoras que haviam aberto seu capital na bolsa viram aí a possibilidade de trabalhar com os segmentos de menor renda, criando braços das empresas ou mesmo comprando empresas que já atendiam de alguma maneira esses setores”, analisa Sávio Augusto de Freitas Miele.
O programa federal também tem limites para solucionar a questão do déficit habitacional na faixa mais baixa de renda, na qual o problema é mais grave. Miele cita alguns dados que mostram essa realidade. “A partir dos dados sobre o déficit habitacional e do próprio programa [nas suas duas fases], observa-se que a maior parte das famílias atendidas são aquelas que possuem renda entre três e dez salários mínimos, o que representa cerca de 15% do déficit habitacional do País. A faixa que comporta as famílias com renda entre zero e três são as menos atendidas e representa cerca de 85% do déficit habitacional”, aponta.
“O nosso drama no Brasil: a gente instituiu esse conjunto de legislação para a política urbana e política habitacional, mas isso ainda está no papel. Há estruturas institucionais, no entanto, todo esse aparato incidiu muito pouco nessa lógica de formação de preço da terra e do imóvel e nos canais tradicionais da terra urbanizada”, pontua Kazuo Nakano, que alerta para os efeitos futuros da falta de planejamento urbano. “As políticas de produção habitacional e produção de terra urbana não se articulam. Vide o Minha Casa, Minha Vida, você tem toda uma infraestrutura de financiamento, de construção, independente de um processo de planejamento urbano.
Muitas moradias estão sendo construídas na periferia, fora da cidade. E isso tem consequências, assim como a gente viu no BNH”, adverte. “Daqui a 20 anos, estaremos falando as mesmas coisas que a gente falava com o BNH. Conjuntos segregados, intensificando o crescimento desordenado e desarticulado da cidade, gerando especulação com a terra nas periferias da cidade. Porque não conseguimos colocar em prática que construir moradia é construir cidades adequadas.”
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Os heróis da resistência do Jardim Edith
Gerôncio Henrique Neto ainda lembra de quando os moradores do Jardim Edith chegaram para construir suas casas no local, que depois seria alvo da Operação Urbana Água Espraiada. Segundo ele, era um grande brejo coberto de lama e completamente vulnerável a alagamentos. Não foi à toa que serviu para abrigar uma população pobre, em grande parte composta por migrantes nordestinos que não tinham acesso a áreas mais bem infraestruturadas e, consequentemente, mais valorizadas da cidade.
“Ali dava enchente de 2 metros d’água. Já cheguei a ficar 15 dias sem poder voltar para casa com minha família por causa da cheia. Era um barrão mesmo. O que dava muito ali era preá, cobra. Ninguém imaginava que ia virar o que virou. Mas depois que valorizou, veio o interesse imobiliário. Naquela área já construíram prédio em tudo. O único terreno que tem é esse do Jardim Edith”, conta Gerôncio. Ele faz referência às inúmeras moradias que existiam ali antes do início da Operação Água Espraiada.
Depois de uma intensa luta, em 2001, os moradores conquistaram o direito de consolidar a área da ocupação como Zona de Interesse Social (Zeis), o que garantiria, conforme a lei, a construção de moradias de interesse social e a permanência da antiga população no local. Mas, apesar da vitória expressa na legislação, a luta precisava continuar.
“Vinham fiscais de Justiça falsos, apresentando ordem sem ser da Justiça”, relata Gerôncio. “Eles ofereciam R$ 1,5 mil. Se quisesse, bem; se não, eles tiravam as coisas e passavam por cima. Foi um absurdo o que aconteceu.”
“Tiraram por três vezes a Zeis do Jardim Edith, mas conseguimos recolocar. Em 2005, teve um incêndio, saíram várias famílias, recebendo R$ 5 mil. Depois, em 2007, outro incêndio. Foram tirando aquelas famílias. O CDHU me ofereceu 508 unidades no Campo Limpo em troca do Jardim Edith. Mas aí eu disse: ‘Peraí, tem uma lei que garante a gente ficar no local.’ Por que me ofereceram essas unidades se tem gente que está há 15 anos cadastrada esperando apartamento? Porque o interesse imobiliário é muito grande. Mas estamos conseguindo.”
Hoje, além das Habitações de Interesse Social (HIS), estão sendo construídos no local uma área verde, um posto de saúde, creche e um restaurante-escola. As primeiras unidades devem ser entregues ainda neste ano; 274 famílias estão cadastradas e recebem R$ 500 reais de bolsa-aluguel, desde 2001, aguardando a conclusão dos apartamentos para retornar à área conquistada.
“Ninguém acreditava que nós íamos conseguir fazer habitação popular naquele local. Um vereador disse pra mim: ‘O mercado imobiliário está acima de tudo, até acima da lei’, mas eu disse pra ele que ia conseguir, se existe a lei, é para se cumprir.”
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São Paulo, a cidade-global da América Latina?
Com prédios altíssimos, modernos e envidraçados, somados a um dos maiores PIBs entre as cidades do continente latino-americano, São Paulo disputa o posto de ser uma cidade-global. Afinal, a capital paulista também tem o seu World Trade Center. A imagem da cidade-global, segundo o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, é reforçada na mídia, no mercado imobiliário e nos meios acadêmicos governamentais como um modelo de sucesso a ser seguido. “Trata-se de uma construção ideológica, que visa a promover, antes de tudo, os interesses específicos dos setores beneficiados com a rentabilidade imobiliária que as ‘ilhas de primeiro mundo’ geradas pelo discurso da ‘cidade-global’ propiciam.”
Essa ideia, conforme o pesquisador, justifica o discurso de governantes que investem em áreas nobres da capital, enquanto a periferia cresce na exclusão. “Cria-se o discurso de que a cidade precisa de vários centros de convenção de eventos, um aeroporto ultramoderno, shoppings, prédios de alta tecnologia, tudo isso para que ela se torne uma cidade-global. Ou seja: a necessidade de muito investimento público para atrair mais investimento privado”, afirma. Ele ainda critica os últimos gestores da cidade: “O governo do Serra/Kassab retomou sem constrangimento, com toda a desfaçatez, investimentos concentrados para favorecer o mercado imobiliário. PSDB e Kassab são identificados com as elites e reproduzem um governo de elite em um Estado elitista, criando um apartheid social escamoteado.”
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Um túnel e o destino incerto de 8 mil famílias
Por Igor Carvalho
“Eu não sei para aonde irei, se me tirarem daqui”. A preocupação é do seo José Henrique, pai de uma das 8.395 famílias que serão removidas de suas moradias para a construção de um parque linear na beira do córrego Água Espraiada. Próximo ao parque, será construído, também, um túnel de 2.350 metros, precedido de uma via segregada de 750 metros. Só para essa obra, está prevista a desapropriação de 700 casas, segundo o engenheiro José Orlando, representante dos moradores da área em que será construído o túnel.
A Lei nº 13.260, de 28 de dezembro de 2001, aprovou a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, incluindo uma obra que tinha como principal intuito ligar a Av. Dr. Lino de Moraes Leme até a Rodovia dos Imigrantes. O projeto era extenso e previa, ainda, a construção de ciclovia, viadutos, pontes e também das unidades de Habitação de Interesse Social. Passaram-se quase dez anos para que fossem promovidas alterações na lei, o que ocorreu em 4 de julho de 2011. José Orlando presenciou a votação na Câmara Municipal de São Paulo que determinou as modificações. “Foi uma vergonha, estávamos acampados havia 32 dias na Câmara, protestando contra a alteração da lei. No último dia antes do recesso, no fim da noite, depois de uma estranha paralisação, eles votaram.” Dos 52 vereadores presentes para a votação, 35 foram a favor da mudança na lei, que determinava a construção do túnel, que não estava previsto na lei de 2001.
Há 15 favelas que se formaram na beira do córrego Água Espraiada, e todas essas pessoas serão removidas de suas moradias para que a obra tenha seu início. Porém, na outra ponta desse imbróglio, está uma determinação, prevista na lei, de que a prefeitura deve fornecer moradia aos desalojados. A assessoria de imprensa da SP Obras, órgão vinculado à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras – que tem como objetivo executar programas, projetos e obras definidos pela administração municipal –, alega que “o Cades [Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável] concedeu licença para as obras de reassentamento de 4 mil famílias – das 8.395 famílias previstas para serem atendidas – e, agora, o projeto está sendo finalizado para que as obras sejam iniciadas”.
Alguns moradores, como José Henrique, temem que sejam removidos de suas moradias antes que as habitações populares estejam prontas. Muitos não vão ser contemplados, e isso os preocupa. “Foi cadastrada uma parte da população, não a totalidade. Quem é cadastrado tem um cartão magnético. Como vou acreditar neles, se não começaram nenhuma das 45 obras que vão abrigar as famílias desalojadas?” Em sua resposta, a SP Obras não fala diretamente sobre o assunto, mas deixa a entender o que deve acontecer. “As famílias aguardarão em aluguel social a entrega das moradias definitivas.”
Desvalorização dos imóveis e falta de justificativa irritam moradores
Na região inserida no projeto de lei para a construção do túnel, a preocupação é similar. Alguns moradores estão sendo procurados por uma empresa que diz representar uma empreiteira que vai realizar obras na região, para negociarem seus imóveis que serão demolidos. Para João Salgueiro, 74 anos, morador da região há 30, “essa obra é um loucura, antes passava só na região do córrego, estava certo, desde que se dê moradia ao pessoal da favela, mas nesse novo projeto [túnel], tudo é bagunçado. Tenho problemas sérios de saúde, fiz oito operações. Eu mesmo levantei minha casa e agora vou ter que me desfazer dela”. José Orlando repercute o que tem escutado dos moradores, nas reuniões do movimento. “Quando você liga nessa empresa, eles fazem propostas escabrosas, tem imóveis valiosos aqui que estão sendo desvalorizados.”
Até o fechamento desta matéria, a Prefeitura de São Paulo, por meio de contato com a SP Obras, não apresentou um estudo de fluxo de tráfego que justifique a construção do túnel na região.