1964: golpe ou revolução?

A maneira como nós olhamos o passado depende de valores, convicções e necessidades do presente, o que se reflete na forma semântica com que batizamos os eventos históricos

Nesta segunda-feira, 31 de março de 2014, o Brasil lembra –mais lembra do que comemora– os 50 anos do movimento que derrubou o governo do presidente João Goulart e instaurou o regime militar de 64. É um período da história que ainda permanecerá por muito tempo cercado de controvérsia, a começar pela definição do que realmente aconteceu no país. Para os militares, em 64 houve uma “Revolução” no Brasil, cujos principais objetivos seriam restaurar a ordem pública, controlar a indisciplina nos quartéis e impedir a tomada do poder pelos comunistas. Por esse ponto de vista, tratou-se, portanto, mais de uma “contrarrevolução” do que de uma “revolução”. Conceito inteiramente diverso pode ser observado atualmente nas redes sociais, na imprensa e nos discursos civis, que em geral definem 1964 como um “golpe militar” que instaurou uma “ditadura” no Brasil. Continuar lendo

Concentração fundiária e grilagem no Pará

A Constituição Federal (art. 51 do ADCT) e a do estado do Pará (art. 15) determinaram a revisão da legalidade das titulações de terras realizadas a partir da metade do século passado, permitindo o combate à grilagem. Passadas duas décadas, nem o Congresso Nacional nem o estado do Pará cumpriram suas obrigações

por Girolamo Domenico Treccani

Residência de ribeirinhos no Amazonas

A apropriação de terras públicas na Amazônia continua uma realidade na qual milhões de hectares estão ilegalmente ocupados e matriculados. Na ausência de uma definição jurídica, adotaremos a seguinte: grilagem é “toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros”.1

O poder público pode atestar se alguém recebeu um título, mas não há estatísticas sistematizadas das informações sobre quantas e quais terras foram incorporadas ao patrimônio público; quantos títulos foram expedidos a particulares; para quem; qual seu tamanho; ou onde ficam as áreas que se incorporaram ao patrimônio particular. E o mais grave é a desconexão entre os papéis (documentos) e o que existe no chão. Continuar lendo

O novo não se inventa, descobre-se

Reconhecido internacionalmente por suas contribuições às Ciências Humanas e, entre os que conviveram com ele, por sua generosidade e humildade, Milton Santos é hoje uma referência também para o movimento negro

Por Glauco Faria

“Ele representava nas Ciências Humanas o que se pode chamar de ala combatente. O que Florestan Fernandes foi na Sociologia, ele foi na Geografia. Nos seus trabalhos, o rigor científico nunca foi obstáculo a uma consciência social desenvolvida e profundamente arraigada nos problemas do Brasil.” Foi assim que um dos grandes intelectuais brasileiros, Antonio Candido, definiu o geógrafo Milton Santos, que foi seu colega na Universidade de São Paulo (USP).

Baiano de Brotas de Macaúbas, Milton Santos cursou Direito em Salvador, embora quando jovem tivesse dado aulas na área que verdadeiramente o apaixonava, a Geografia. Na universidade, envolveu-se com a política estudantil e chegou a ser eleito vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Mas as letras da lei não foram suficientes para seduzi-lo e, concluída a graduação, Milton tornou-se professor de Geografia do Instituto Central de Educação Isaías Alves (Iceia) e do Colégio Central. Levou a concurso sua tese Povoamento da Bahia, e passou a ocupar a cadeira de Geografia Humana do Ginásio Municipal de Ilhéus. E foi ali que escreveu seu primeiro livro, A Zona do Cacau, que tratava da monocultura na região. A obra já alertava para os riscos que poderiam advir da adoção de tal prática. Continuar lendo

Democracia ou Capitalismo?

A democracia liberal foi derrotada pelo capitalismo e não me parece que seja derrota reversível. Portanto, trata-se de inventar nova democracia

Por Boaventura de Sousa Santos 

No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.

Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.

Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referência ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo. Continuar lendo

Geopolítica e Ética internacional

Usar direitos humanos como pretexto para intervenções militares pressupõe hierarquia entre povos cuja ilegitimidade foi identificada já no século XVII

“Eu via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra
que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras.”
Hugo Grotius, O Direito da Guerra e da Paz, 1625

Por José Luis Fiori

Por definição, todo poder territorial é limitado e expansivo. Envolve a existência de fronteiras, e de algum tipo de “inimigo externo” ou “bárbaro”, de quem se defender e a quem “conquistar” e “civilizar”. Por isto, os projetos expansivos de poder sempre se revestem de algum sentido de missão, e adotam algum sentido moral e messiânico. E toda conquista vitoriosa produz e impõe algum tipo de discurso e de ordem ética “supranacional”. Em muitos casos, estes poderes expansivos se associaram com religiões que se propunham ajudar na conquista messiânica e na “conversão” dos povos bárbaros. E o mesmo aconteceu com o colonialismo europeu, até o momento em que adotou a retórica laica e universalista do “direito natural”, e mais recentemente, dos “direitos humanos” e das “intervenções humanitárias”. Continuar lendo

Como e o quê?

Uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, e seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram

por José Antonio Moroni

A reforma política está presente na agenda nacional há vários anos, mas nas últimas semanas, após as manifestações e o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff, um novo ingrediente, que diz respeito ao “processo”, foi acrescentado. Isto é, qual é o caminho para fazer a reforma política. Continuar lendo

Poder, geopolítica e desenvolvimento

O capitalismo nasceu associado com um sistema de poder específico, o sistema interestatal europeu. E, desde o início, foi um dos principais instrumentos de poder dos estados que se impuseram, transformando-se nas primeiras ‘grandes potências’ do sistema.

José Luís Fiori

“Em última instancia, os processos de desenvolvimento econômico também são lutas de dominação”.
Max Weber, Escritos Politicos I, Folios Ediciones, Mexico, 1982, pág. 18

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O golpe consumado

No Paraguai, tudo parece apontar para uma volta do Partido Colorado ao poder. A regressão é facilitada pela divisão da esquerda

por Gerhard Dilger

(O favorito Horacio Cartes, do Partido Colorado, durante carreata em Luque)

“As eleições já estão praticamente perdidas.” Para o pa’í (padre, em guarani) Francisco Oliva, jesuíta de 84 anos, militante social, comunicador e um dos mais reconhecidos analistas da sociedade paraguaia, “só um deus ex machina, como nas tragédias gregas”, poderá impedir a volta ao poder do Partido Colorado, que governou o Paraguai de 1947 até 2008. “E eles vêm para ficar por dez ou talvez vinte anos, com todo tipo de armadilhas”, acrescenta. “Estão muito bem organizados. Seu governo será totalmente vertical, direitista, clientelista; o atraso do Paraguai no contexto mundial só vai aumentar.”

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Síria: por que Assad não cai

Guerra civil recrudesce, e ONU condena tirania, mas Immanuel Wallerstein analisa: pressão internacional por sua derrubada não passa de retórica

Por Immanuel Wallerstein | Tradução: Antonio Martins

O presidente sírio, Bachar al-Assad suporta o peso de ser um dos homens menos populares no mundo. É apontado como tirano – um tirano muito sangrento – por quase todos. Mesmos os governos que se recusam a denunciá-lo parecem aconselhá-lo a conter a repressão e fazer algum tipo de concessão política a seus oponentes internos. Continuar lendo

A TV pode ser cidadã?

Por Ricardo Santos

Criada em 1936 e massificada após 1945, a televisão é o maior veículo midiático da atualidade. Em 1950, Assis Chateaubriand trouxe o primeiro canal para o Brasil: a Rede Tupi. Hoje, muita coisa mudou. Nossa TV é, inegavelmente, de primeiro mundo e é uma das melhores do planeta. Ainda assim, tem problemas. Por aqui, as concessões estão nas mãos de uma burguesia sintonizada com o poder. É por isso que não quer mudanças na estrutura de mando, afinal, se alimenta e beneficia dele. Resultado: a mídia nos vê, apenas, como alienados e meros consumidores de seus produtos. Continuar lendo