ESPECIAL 40 ANOS DO GOLPE NO CHILE – CARTA MAIOR – 5 matérias

Chile e a experiência do Poder Popular

Mauro Iasi, no Blog da Boitempo

“Porque esta vez no si trata
De cambiar un presidente
Será el pueblo que construya
Un Chile bien diferente”

Falando-nos sobre as características da revolução proletária, Marx disse certa vez que nossas revoluções “encontram-se em constante autocrítica, (…) retornam ao que aparentemente conseguiram realizar, para recomeçar tudo de novo, (…) parecem jogar seu adversário por terra somente para que ele sugue dela novas forças e se reerga diante delas em proporções ainda mais gigantescas” (O 18 de brumário de Luís Bonaparte, p.30). De fato não se aprende com o passado a não ser o que deveríamos ter feito no passado. O que importa no estudo de nossa experiência de classe pregressa é descobrir os caminhos por onde passou o futuro em construção, os impasses e erros que nos distanciaram de nossa meta, para, assim, olhar para frente com mais segurança. Nossa revolução não tira sua poesia do passado, mas do futuro, como também disse o velho mestre, pois se antes a frase vazia das revoluções burguesas iam além do conteúdo, agora é o conteúdo proletário que não cabe na fraseologia vazia do ideário burguês.

O que a revolução chilena nos ensina neste olhar para o futuro?

Ao lado de características comuns a todos os povos da América Latina – tais como a dependência em relação aos interesses externos, a economia agro-exportadora, o domínio das oligarquias reacionárias, a concentração de terras – existiam no Chile alguns fatores que davam certa singularidade a sua formação social. Entre eles, uma história política que acabou por constituir uma estabilidade ordenada constitucionalmente e a presença de forças armadas inspiradas por anseios nacionais e progressistas, chegando mesmo a apoiar uma República Socialista que se manteve no poder por 12 dias em 1932.

Ainda que tal fato não tenha impedido episódios de reacionarismo e repressão (como a Lei de Defesa da Democracia, conhecida como “lei maldita” de 1948) as eleições foram diretas desde 1924 e acompanharam um lento, mas crescente, amadurecimento de uma alternativa popular e socialista.

Em 1951 socialistas e comunistas se unificam em uma Frente do Povo e lançam Salvador Allende que obtêm 6% dos votos perdendo para o general Ibañez Del Campo. Em 1957 o Partido Socialista (PS) define uma linha de Frente de Trabalhadores e abre caminho para a unidade com o Partido Comunista (PC). A direita e as classes médias, temerosas com o crescimento da esquerda, contra-atacam com a formação do Partido Democrata Cristão (PDC).

Em 1958 o PDC derrota Allende por uma diferença de 35 mil votos e alguns anos depois irá defender uma alternativa que não seria “nem socialista, nem capitalista” prometendo uma “revolução sem sangue”. Em 1964 o candidato do PDC, Eduardo Frei (56%), derrota Salvador Allende (39%) em uma eleição na qual a CIA despejou U$425 mil. Naquela oportunidade 0,7% dos proprietários controlavam 61,6% das terras chilenas e o imperialismo monopolizava todos os setores chaves da economia, a começar pela mineração. O desemprego era de 300 mil e a inflação corroia os salários. Isabel Parra cantava:

“Linda se ve la patria señor turista,
Pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
De hambre se muere gente que es un portento.
Mucho dinero en parques municipales
Y la miseria es grande en los hospitales.
Al medio de alameda de las delicias,
Chile limita al centro de la injusticia.”

Eduardo Frei edita três leis sobre reforma agrária bastante moderadas. Os partidos populares (entre eles, o MIR, que havia sido fundado em 1965) e a CUT passam a organizar os camponeses e chegam a uma greve geral camponesa marcada por intensa mobilização e confrontos entre 1967 e 1969. Estas mobilizações serão violentamente reprimidas pelo governo do PDC. Como outras vezes ocorreu em nosso sofrido continente, a revolução sem sangue virou sangue sem revolução.

Estes acontecimentos aceleraram a formação da Unidade Popular, formada pelo PC, pelo PS e por outros setores como o Partido Radical, a Ação Popular Independente e um racha do PDC chamado Movimento de Ação Popular (MAPU). A maior divergência que se expressava neste momento entre as forças de esquerda era sobre a possibilidade de uma vitória eleitoral e sua relação com a estratégia socialista. Os comunistas colocavam a meta socialista como algo a ser alcançado em um horizonte longínquo, enquanto os socialistas defendiam que uma vitória eleitoral poderia ser o início da construção socialista.

Apresentaram um programa que refletia esta tensão. Propunha-se a nacionalização da economia, aprofundar a reforma agrária, retomar o crescimento econômico, ampliar a oferta de emprego e provocar uma melhora significativa na qualidade de vida das camadas populares.

Em 1970, em uma eleição disputadíssima, Salvador Allende venceu com 36,5% ao candidato do Partido Conservador, Jorge Alessandri (35%) e Rodomiro Tomic do PDC (27,8%). A diferença foi de 39 mil votos e, por não ter alcançado a maioria absoluta, o candidato socialista deveria ser confirmado pelo Congresso, de maioria conservadora.

A CIA tinha outras alternativas e acalmou os conservadores. Como ficou demonstrado por um bilhete de um agente chamado Helms que descrevia um plano de nome TracII, o departamento de Estado Norte Americano apostava em uma complexa operação de desestabilização.

Em setembro de 1970 o povo trabalhador tomou as ruas e festejou pacificamente sua vitória.

“Porque desta vez no se trata
de cambiar un presidente
será el pueblo que construya
un Chile ben diferente”

Desta vez não se tratava de trocar um presidente, seria o povo chileno, organizado e politizado, que estava disposto a construir um Chile bem diferente. Uma cultura popular explodia com uma radicalidade que, como dizia Victor Jara, não era apenas música de protesto, mas música popular que nascia da identidade compartilhada com o povo e suas lutas. E se a esquerda abraçou o povo e seus anseios, o povo abraçou as bandeiras da esquerda e o socialismo tornou-se um fenômeno de massa. O Partido Comunista, por iniciativa e trabalho do próprio Jara, chegou a organizar vários conjuntos musicais, entre eles o Quilapayun e o Inti-Illimani.

O presidente eleito cumpriu o programa pelo qual se elegeu: nacionalizou a mineração (responsável por 80% da receita do país e que antes era monopolizado pela Anaconda, Kennecolt, Serro Co. e outras), estatizou o sistema financeiro e colocou normas de controle sobre os monopólios industriais e as empresas de telecomunicações, entre elas a poderosa ITT. Assumindo o governo, mais do que simplesmente o posto, a Unidade Popular tinha ferramentas para dirigir a economia, ainda que nos marcos do capitalismo.

O resultado já no primeiro ano foi surpreendente. O desemprego caiu pela metade, os salários subiram entre 35% e 60%, o setor industrial cresceu 12% e o PIB 8,3%, a reforma agrária é imediatamente estendida a 30% das terras, e apesar destas heresias, inflação declinou (coisa que certos economistas ilustres de hoje teriam grande dificuldade de explicar, não é?). O povo cantava: “venceremos, venceremos… a miséria sabemos vencer”.

A tensão cresce no campo, o MIR e o MAPU organizam o Movimento Revolucionário Camponês, cada criança tem direito a um litro de leite, os proprietários de terra sabotam a colheita, os operários se organizam em cordões industriais, 300 mil cabeças de gado são contrabandeadas para a Argentina, 96% do crédito bancário está na mão do governo, 10 mil litros de leite jogados no rio e as senhoras da classe média, aquelas que moravam “en las casitas del barrio alto”, fazem passeatas porque as crianças gastaram o leite e o preço dos cosméticos subiu. Os trabalhadores cantam: “não nos moverão, e aquele que não creia que faça a prova, unidos em sindicatos, não nos moverão, construindo o socialismo, não nos moverão”!

O imperialismo joga. Manobra para baixar o preço do cobre, sabota as minas, o Exibank suspende o crédito internacional, os jornais burgueses, entre eles o maior – El Mercúrio – faz o trabalho de desinformação. A dívida passa de 2,5 bilhões em 1970 para 4 bilhões em 1973. As reservas de 350 milhões tornam-se um déficit de 400 milhões. Os empresários fecham as fábricas em um lockout em 1972 e os caminhoneiros, financiados pela CIA, paralisam os transportes rodoviários. Os trabalhadores nos cordões ocupam as fabricas e se armam. E cantam: “levántate e mira a tus manos, para crescer estreita-las a tus hermanos”.

Allende diz: “comprometi-me a agir dentro das leis e da constituição e ninguém me fará abandonar este caminho”. No parlamento os conservadores, aqueles a quem o povo chamava carinhosamente de “múmias”, exigem a aplicação da lei do desarmamento. E Angel Parra cantava: “me gusta la democracia en neste hermoso país, pois permite a negros e blancos admirar los monumentos… soy democrata, tecnocrata, plutocrata y hipócrita”!

A inflação volta a subir e passa de 22% em 1971 para 163,4% em 1972 e chega a 325% em 1973. Os monetaristas de Chicago podiam festejar sua profecia autorrealizável. John Marc Cone diz: “vamos lançar o Chile num verdadeiro caos econômico”. O governo reage aos boicotes e cria as Juntas de Abastecimento e Preços e os Comandos Comunais. O Ministro da Defesa, General Prats, fiel ao governo da Unidade Popular, comunica ao presidente que setores das forças armadas planejam interromper o processo constitucional e se dispõe a prender os líderes. O comando das forças armadas considera este ato uma ingerência e exige o afastamento de Prats. Assume o ministério o General Augusto Pinochet. O povo canta: “no nos moveran… nin con un golpe de estado, no nos moveran”!

No dia 29 de junho os tanques fazem seu ensaio no Tankazo e cercam o palácio. Dia 11 de setembro eles voltariam acompanhados de aviões que bombardeiam La Moneda, o palácio presidencial. Operários, estudantes e camponeses cantam: “traicionar a la pátria jamás”. A marinha faz manobras conjuntas com as tropas norte-americanas em Valparaiso. Fidel, em sua visita ao Chile, deu de presente a Allende uma metralhadora e oferece os serviços de um de seus principais generais e assessor militar, general Uchoa. Allende está isolado em La Moneda, o povo… desarmado. Os soldados e oficiais fieis ao governo socialista são fuzilados nos quartéis. A constituição está rasgada e o congresso canta: “soy democrata, tecnocrata, plutocrata… hipócrita”.

O presidente Allende falou em sua posse em 1970: “isto que hoje germina é uma larga jornada, eu só peguei em minhas mãos a tocha que acenderam todos aqueles que antes de mim lutaram ao lado e pelo povo, este triunfo devemos oferecer em homenagem aos que caíram nas lutas sociais e regaram com seu sangue a fértil semente da revolução chilena que vamos realizar”. Mas a semente exigia ainda mais sangue.

Em 11 de setembro de 1973 o presidente falará pela última vez ao povo:

“Companheiros trabalhadores, eu não vou renunciar. Colocado nesta transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo e digo que tenho a certeza que a semente que entregamos à consciência digna de milhões de chilenos não poderá ser negada porque não se detêm os processos sociais, nem com o crime, nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos (…) Neste momento decisivo o único que posso dizer a vocês é que aprendam a lição. O capital estrangeiro, o imperialismo, criou o clima para que as forças armadas rompessem sua tradição (…) Trabalhadores de Chile, tenho certeza que mais cedo que tarde se abriram novamente as grandes alamedas por onde passarão os homens livres para construir uma sociedade melhor. Viva Chile, viva o povo, viva os trabalhadores…”

O presidente Allende está morto. Serão mais de 30 mil mortos e milhares de presos e desaparecidos. O Estádio Nacional se transforma em um presídio onde serão confinados milhares de trabalhadores. Entre eles está Victor Jara que canta desafiando seus algozes: “Venceremos, venceremos… socialista será el porvenir…”. É abatido a golpes de fuzil e suas mãos são esmagadas a coronhadas. O povo chora:

“Hijo de la rebeldía
Lo siguen veinte más veinte,
Porque regala su vida
Ellos le quieren dar muerte.
Correlé, correlé, correlá,
Por aquí, por allí, por allá,
Correlé, correlé, correlá,
Correlé que te van a matar,
Correlé, correlé, correlá”.

Ernesto Che Guevara dizia que a maior qualidade de um revolucionário é de encontrar as táticas adequadas a cada momento e explora-las ao máximo sendo um erro descartar qualquer tática a princípio. Desta forma seria, ainda segundo Che, um “erro imperdoável descartar por princípio a participação em algum processo eleitoral”, mas alerta: “quando se fala em alcançar o poder pela via eleitoral, nossa pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular ocupa o governo de um país sustentado por ampla votação popular e resolve em consequência iniciar as grandes transformações sociais que constituem o programa pelo qual se elegeu, não entrará imediatamente em choque com os interesses das classes reacionárias desse país? O exército não tem sido sempre o instrumento de opressão a serviço destas classes? Não será então lógico imaginar que o exercito tomará partido por sua classe e entrará em conflito com o governo eleito? Em consequência, o governo será derrubado por meio de um golpe de estado e aí começa de novo toda a velha história”.

Brasil, ano 2002. O candidato popular vence as eleições por ampla margem de votos. Os mercados se acalmam, o presidente do Banco Central vigia, os salários perderam entre 2003 e 2005 14,56% de seu valor real, os juros vão caindo pouco a pouco, os bancos seguem privados e lucrando como nunca, a reforma agrária patina sem sair do lugar, o judiciário nega a primeira liminar de desapropriação, os ruralistas se armam, o presidente diz que na marra ninguém ganha nada, criticando o MST, os militares ficam fora da reforma da previdência, os aposentados e funcionalismo público não, o equilíbrio monetário está salvo, a fome persiste, os superávits primários são maiores que o combinado com o FMI, as demandas sociais terão que ser tratadas focalizadamente. As 500 maiores empresas aumentam seus lucros: seus ganhos saltaram de 2,9 bilhões de dólares em 2002 para 43,3 bilhões em 2006. Entre 2002 e 2009 o fundo público transferiu o equivalente a 45% do PIB para o capital financeiro (dava para manter o Bolsa família por 108 anos). O 1% dos mais ricos tem uma renda maior que os 50% mais pobres. Quase 6 milhões de pessoas saíram da linha da miséria absoluta, quando ganhavam 1 dólar por dia – agora ganham 2 dólares por dia. Entre 1990 e 2012 os 10% mais ricos saltam do controle de 53% da riqueza nacional para 72,4%. As massas vão às ruas em 2013 contra o aumento das passagens, pela saúde e pela educação… a presidente garante à burguesia que manterá a ordem e a responsabilidade fiscal… o PT lança nota dizendo que sua aliança prioritária em 2014 será com o PMDB, o perigo de golpe esta afastado para o momento… “me gusta la democracia em neste hermoso país”.

E Violeta Parra canta:

“Miren como sonríen los presidentes
cuando hacen promesas a inocentes,
miren como prometen a los sindicatos
este mundo y el otro los candidatos,
miren como redoblan los juramentos,
pero después del voto doble tormento”

* Versão modificada de texto escrito em 2003,
para esta publicação no Blog da Boitempo.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Especial/Diario-da-Nova-Bolivia/Chile-e-a-experiencia-do-Poder-Popular/143/28538

40 Anos do Golpe no Chile

Samuel Pinheiro Guimarães

Fora do contexto mais amplo da política dos Estados Unidos para a América Latina, é difícil compreender o golpe no Chile, 40 anos atrás.

Desde a Independência das colônias espanholas e portuguesa, no início do século XIX, e da proclamação da Doutrina Monroe, em 1823, os Estados Unidos consideram, e as potências europeias reconhecem (e muitos latino americanos aceitam), que a América Latina deve estar necessariamente na sua área de influência, isto é, sob a sua hegemonia.

Sobre a América Central e o Caribe os Estados Unidos estabeleceram o seu domínio com a conquista pela força armada de mais da metade do território do México, em 1848; com as seguidas intervenções e longas ocupações militares na Nicarágua, no Haiti, na República Dominicana e outros países; com a conquista de Cuba e de Porto Rico à Espanha; com a promoção da secessão do Panamá, em 1903, e a construção do Canal, com sua Zona de ocupação militar permanente, que perdurou até o ano 2000.

Estava criado o Mar Americano, do novo Povo Eleito.

Sobre a América do Sul, os Estados Unidos demorariam a estabelecer sua hegemonia, em parte devido à maior dimensão dos Estados e em parte devido à presença financeira, comercial e política inglesa até o fim da Primeira Guerra Mundial.

Encontraram os americanos sempre, em suas investidas de articulação política dos países da América do Sul, a oposição argentina, o VI Domínio da Grã-Bretanha, e a cooperação brasileira, desde o Barão do Rio Branco, na chamada Aliança não-escrita.

Após a penosa vitória sobre o Império Alemão, em 1918, conseguida, aliás, somente graças à ajuda econômica e militar americana, começa a se esvair a presença britânica na América do Sul e a se afirmar a influência política e econômica dos Estados Unidos.

O Corolário à doutrina Monroe, de autoria de Teodoro Roosevelt, belicoso tio de Franklin Delano, anunciado em 1904, em que os Estados Unidos se arrogavam o direito de intervir em qualquer país do Continente que se revelasse incapaz de manter a ordem (isto é, os interesses americanos) e o êxito em incluir a Doutrina Monroe entre os princípios do tratado de criou a Liga das Nações, em 1919, revelam claramente a visão americana da América Latina.

Devido à necessidade de aliciar o apoio dos Estados do Continente diante da ameaça nazista no horizonte, os Estados Unidos abandonaram a política do big stick e a diplomacia do dólar e lançaram a Política de Boa Vizinhança, com Zé Carioca e tudo o mais, renunciando retoricamente à sua hegemonia, e passaram a cultivar ativamente as elites e, muito em especial, os proprietários dos meios de comunicação na América do Sul.

Após a Segunda Guerra, o extraordinário prestígio americano e sua determinação de alinhar os regimes sul-americanos na luta contra o comunismo levou, de um lado, à criação, em 1948, da Organização dos Estados Americanos, a OEA, organismo regional previsto na Carta das Nações Unidas, e, de outro lado, à defesa da livre iniciativa como dínamo do desenvolvimento latino-americano, com atração do capital estrangeiro, o que significava capital americano, visto o estado precaríssimo das economias europeias no pós-guerra.

Com a Revolução Cubana, em 1959, tudo muda. A invasão fracassada da Baía dos Porcos (semelhante à operação que depôs Jocobo Arbenz, na Guatemala, em 1954); a oposição americana, cada vez mais feroz, a Cuba; a arregimentação dos regimes latino-americanos contra Cuba; a resistência de certos governos, entre eles o do Chile, à determinação americana de intervir em Cuba; e a suposta fragilidade dos governos civis latino-americanos diante da imaginada influência cubana e comunista, transformariam a política de Boa Vizinhança na política de instalação de governos militares, na aplicação da teoria da modernização autoritária, da qual fazia parte a Aliança para o Progresso.

O primeiro regime militar a ser instalado na execução da nova política foi o do Brasil, em 1964, em que houve ampla participação americana na preparação do golpe, inclusive na escolha do novo presidente, o general Castelo Branco, amigo do adido militar americano, Vernon Walters, segundo os documentos revelados pelos Estados Unidos e mostrados no educativo filme, O Dia que Durou 21 Anos.

Era a política de mudança de governo (regime change) executada pela CIA, de forma encoberta (covert action) com ações diretas e de espionagem, hoje fartamente documentada, e que nos dias atuais se faz de maneira absolutamente aberta, e até com certa desfaçatez, com a participação de serviços de inteligência e de ação americanos (special operation forces), de fundações públicas e privadas, de ONGs. Tudo com a ajuda da tecnologia mais sofisticada de espionagem, da qual não escapam os aliados (acólitos) mais confiáveis, como a Alemanha de Frau Angela Merkel e a França de Monsieur François Hollande e aqueles Estados amigos, como o México, do Señor Peña Nieto, tão longe de Deus, e o Brasil, da Senhora Dilma Rousseff, surpresa e indignada.

O Chile era, em 1973, um caso de grande importância estratégica para a política americana na América do Sul.

A ascensão democrática de Salvador Allende, sua disposição de implantar um regime socialista democrático e nacional no Chile, sua política externa independente, o receio de que viesse a estimular países latino-americanos a procurarem novas estratégias de desenvolvimento e a se rebelarem contra as ditaduras militares já implantadas no Brasil (1964) na Argentina (1966 ) no Uruguai (1971), na Bolívia (1971) levaram à determinação americana de organizar um golpe militar no Chile com a articulação financeira, política e midiática da direita civil e militar do pais.

Os Estados Unidos articularam a ascensão ao poder de uma das ditaduras mais cruéis, violentas e implacáveis da América Latina, comandada pelo General Augusto Pinochet, pelo jornal El Mercúrio e pelo empresariado chileno.

A ditadura do General Augusto Pinochet reverteu a reforma agrária do Governo Allende e implantou um programa neoliberal de reformas econômicas, sob o comando dos Chicago Boys , um primeiro resultado do programa de formação de pessoal nos Estados Unidos, financiado pela Aliança para o Progresso, fenômeno que se repetiria mais tarde em outros países da América do Sul. A Operação Condor, a articulação dos governos militares para perseguir, capturar e executar as lideranças políticas de esquerda , teve como seu inspirador o Chile, com a famosa DINA, Direção de Inteligência Nacional, cujo chefe era pago pela CIA.

O apoio brasileiro ao golpe militar chileno foi imediato e prolongado no tempo assim como o apoio norte americano e dos países europeus.

Com a crescente oposição americana aos regimes militares devido à sua deriva para uma posição de certa independência em relação aos Estados Unidos, com projetos em especial na área militar (tais como o projeto Condor de mísseis na Argentina e os programas brasileiros nas áreas espacial, nuclear e de informática), e com a nova política americana de direitos humanos, o regime de Pinochet perderia o apoio americano, dos europeus e dos países da região mas somente viria a ser substituído em 1990.

Interessante, antes e após a queda do regime de Pinochet, ditadura cruel e implacável, foi a defesa, por certos órgãos da mídia internacional e brasileira, do regime chileno como modelo para o Brasil, e para outros países latino-americanos, justificando o regime militar como forma necessária de implantar as reformas econômicas.

Agora, redemocratizada a América do Sul, neoliberalizada pelos programas de renegociação da dívida e pela aplicação das políticas, definidas pela academia, Tesouro americano, FMI e Banco Mundial, resumidas no Consenso de Washington, políticas implantadas por economistas treinados nas melhores universidades americanas, futuros banqueiros e empresários, tudo parecia tranquilo para o Império. Mas, como o Continente viu a emergência de movimentos sociais e de Partidos políticos de diferentes matizes de esquerda, eleitos democraticamente, presenciamos hoje operações políticas de regime (ou policy) change nos diversos países da América do Sul que não aderiram ao modelo americano de política econômica, implantado pelos acordos de livre comercio que o Chile, já em 1994, a Colômbia e o Peru celebraram com os Estados Unidos e que tem como princípios a privatização, a desregulamentação, a abertura comercial e financeira, o privilégio ao capital multinacional.

Hoje, os Governos da América do Sul podem realizar programas sociais (no que terão o apoio da Igreja, antiga defensora dos regimes militares, hoje convertida), reduzindo a pobreza e estabilizando sociedades em extremo desiguais, podem construir sua infraestrutura a duras penas e podem ter veleidades de política externa, até aceitas pois agradam os movimentos de esquerda, mas não podem, sob pena de se tornarem alvo de políticas ativas de regime change, tomarem iniciativas concretas para promover políticas que abalariam os pilares da dominação imperialista:

• democratizar a mídia
• fazer a auditoria da dívida pública
• substituir o regime de metas inflacionárias por um regime de metas de desenvolvimento e emprego
• disciplinar o capital multinacional
• desenvolver sua indústria de defesa

Os Estados que respeitarem estes limites, que não tentarem implementar políticas com tais objetivos, continuarão a crescer a taxas muito baixas, cada vez mais desiguais ainda que com menos pobres, sem autonomia tecnológica, vulneráveis política e militarmente, seu Estado endividado, mas, para a tranquilidade e satisfação de suas classes conservadoras (ainda que sempre apreensivas) continuarão a ser parceiros confiáveis (reliable partners) dos Estados Unidos e de sua hegemonia imperial.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Especial/Diario-da-Nova-Bolivia/40-Anos-do-Golpe-no-Chile/143/28546

Golpe no Chile: economia e política

Paulo Kliass*

A evolução histórica experimentada pelo Chile ao longo das décadas 60 e 70 do século passado guarda uma profunda ligação com o movimento mais geral que atravessou a América Latina naquele período. A experiência chilena se desenrola em meio às proposições mais gerais de projetos nacionais de desenvolvimento, tal como elaboradas sob a influência dos pensadores e dirigentes políticos próximos à Comissão Econômica para a América da Latina e Caribe (CEPAL), da ONU.

Em meio a tantos personagens envolvidos com esse processo, há que se destacar a importância da contribuição exercida pela ação e pela obra do brasileiro Celso Furtado e do argentino Raul Prebisch. Eles figuram dentre os principais formuladores e divulgadores das teses que fundamentavam as políticas de substituição de importações e de articulação de projetos nacionais de desenvolvimento, em razão das dificuldades estruturais que estariam na base da relação entre os chamados países do “centro” e os da “periferia”. A superação dos entraves estruturais ao desenvolvimento autônomo passaria, portanto, pela constituição e pelo fortalecimento dos mercados internos e pela montagem de redes de infraestrutura independentes do capital estrangeiro.

O Chile foi, com toda a certeza, o país da América do Sul que tentou levar esse projeto mais à frente. O processo foi lento, desde os tempos em que o democrata-cristão Eduardo Frei exerceu a Presidência da República. Em 1964 ele disputou com Salvador Allende e sua vitória contou com o apoio explícito da CIA e do governo dos Estados Unidos. Apesar da tendência direitista de seu partido, ele iniciou alguns projetos inovadores, como a tímida reforma agrária, os primeiros passos para a nacionalização da exploração do cobre. Mas as expectativas da população quanto ao aprofundamento do programa mudancista se concretizaram na vitória da coalização da Unidade Popular em setembro de 1970, com Salvador Allende na cabeça de chapa.

Do pós 2ª Guerra à vitória de Allende
No período que se seguiu ao final da Segunda Guerra, o Chile também buscou completar o ciclo da industrialização, a exemplo de Brasil, Argentina e outros países da região. Mas a força do setor primário exportador ainda era muito presente no interior da sociedade e fazia valer seus interesses, em especial a exploração de minérios – com destaque para o cobre. As tentativas de constituição de pólos industriais nacionais encontravam barreiras de natureza diversa, incluindo o baixo dinamismo do mercado interno. A concentração de renda elevada e o baixo nível dos salários impediam a alavancagem de um projeto autônomo. Além disso, a economia chilena apresentava uma taxa de inflação cronicamente elevada, com média superior aos 30% anuais entre as décadas de 1950 e 1970. Por outro lado, o crescimento da economia tampouco exibia índices interessantes, uma vez que o PIB crescia a uma média de 3% ao ano.

A vitória de Allende abre o espaço para implementação de uma política econômica mais autêntica e progressista. Ao identificar os problemas estruturais que impediam o verdadeiro desenvolvimento social e econômico do país, o governo da esquerda lança as bases para operar a transição para um regime mais justo e menos desigual. O programa previa o aprofundamento da reforma agrária, a nacionalização do setor de minérios (cobre, ferro e salitre), a estatização do setor financeiro, a nacionalização de ramos da infraestrutura (telecomunicações à frente), a imposição de tarifas mais elevadas sobre as importações e a recuperação da massa salarial. Esse conjunto seria complementado por uma política fiscal expansionista, de modo a assegurar as despesas necessárias em infraestrutura. Porém, houve a subestimação dos riscos potenciais que poderiam ser apresentados pela continuidade da inflação. O diagnóstico de que ela se tratava de um simples problema de oferta fez com que a preocupação dos formuladores de política econômica fosse apenas a de ampliar a capacidade produtiva.

As medidas foram sendo tomadas pelo novo governo e a tensão política conheceu graus bastante elevados. Como nenhum dos candidatos houvesse alcançado mais de 50% dos votos, a posse de Allende contou com o apoio dos parlamentares da democracia cristã no interior do Congresso Nacional. As pressões exercidas pelo “establishment” comandado por Washington somaram-se aos interesses das elites locais, que passaram a radicalizar a luta política com viés reacionário e buscavam o apoio dos setores de classe média para o projeto golpista. Cada vez mais a estratégia da chantagem e do boicote econômicos ganha espaço, na tentativa de isolar o governo e limitar o seu apoio no interior da sociedade. Os ganhos salariais obtidos ao longo do triênio foram em parte corroídos pela inflação, que por sua vez era alimentada pela política de elevação de preços praticada pelos empresários.

A estratégia catastrofista e a sabotagem norte-americana
A famosa greve dos caminhoneiros em 1972 simbolizou a estratégia golpista. Trata-se de um setor típico da pequena burguesia e que comandava um ramo essencial para a dinâmica da economia – a rede de distribuição de bens. O fantasma do desabastecimento era chamado todo o instante. A radicalização da política por falta de produtos básicos se generaliza, com a tentativa de criar um clima de pânico e responsabilizar o governo de esquerda pelo suposto “caos”. A estratégia precisava buscar o apoio político dos setores médios, com o objetivo de minimizar as eventuais resistências à tomada do poder pela força, como se propunha abertamente. Por outro lado, essa conjuntura termina por estimular a chamada “economia paralela”, com alto grau de informalidade, ausência de controle público sobre preços e o não recolhimento de tributos sobre a atividade produtiva e comercial. O Estado ficava com menos recursos para executar a política orçamentária.

O apoio e articulação do governo norte-americano ao golpe de 11 de setembro tinham como objetivos principais: i) impedir o sucesso da via chilena e democrática ao socialismo; e ii) apoiar os interesses comerciais dos EUA no Chile. Porém, a identidade construída entre os militares golpistas e setores hegemônicos da inteligência ianque propiciou a aproximação também no plano ideológico. E foi assim que se costurou a participação, no interior das equipes dos governos dos militares, dos indivíduos mais destacados de uma geração que ficou conhecida internacionalmente como os “Chicago boys”. Tudo se tornou possível graças a um convênio que havia entre a PUC chilena e a Universidade de Chicago nos EUA. Desde meados da década de 50, os alunos saíam de Santiago para fazer doutorado em economia, naquele que era considerado como um dos principais centros de formação do pensamento monetarista e conservador do planeta. Ali era professor de destaque o direitista e liberal Milton Friedman, que ficou com a marca de “pai do pensamento neoliberal”.

A tomada do Palácio de la Moneda pelas armas e a aproximação das elites conservadoras locais com os EUA permitiram que a sociedade chilena se transformasse numa espécie de laboratório de experiências do neoliberalismo, antes mesmo do termo ser cunhado e ter seu uso generalizado. A política econômica dos governos a partir de 1973 foi formulada tendo por base os pressupostos do liberalismo mais radical. E para isso contava com a colaboração direta e estreita dos meninos de Chicago. Tanto assim que vários deles passaram a ocupar posições de destaque no governo dos militares, a exemplo da presidência do Banco Central, das cadeiras de Ministro da Economia e Ministro da Fazenda, dentre tantos outros cargos estratégicos da alta administração pública.

A ditadura e o laboratório nas mãos dos “Chicago boys”
O programa era uma verdadeira “contra-revolução”, um desmonte dos avanços que haviam sido realizados pelo governo da Unidade Popular. A base para todas as medidas do retrocesso era a tentativa de recuperar a chamada “liberdade de mercado”, bem como a eliminação de toda e qualquer presença do Estado na economia. A liberalização mais evidente começou no plano das relações internacionais, com a política de redução gradual e contínua das tarifas de importação, além de outras restrições às compras de produtos do exterior. Os liberais acusavam os governos anteriores de transformarem o Chile em uma ilha autárquica e, por isso, resolveram abrir a economia para o resto do mundo. Por outro lado, a taxa de câmbio desvalorizada permitia ganhos expressivos para o setor exportador e aprofundava ainda mais a redução real dos salários.

A liberalização da economia chilena contemplou também a privatização de empresas estatais ou que haviam sido nacionalizadas. Assim, setores estratégicos e áreas importantes foram oferecidos ao setor privado, a exemplo da infraestrutura, mineração e outros. Além disso, os serviços públicos oferecidos pelo Estado passaram por processo de mercantilização, sendo que o caso mais expressivo foi a privatização da própria previdência social pública.

A marca neoliberal atingiu também a questão fundiária, com uma profunda alteração nas prioridades do governo ditatorial. A política de reforma agrária foi abandonada e a prioridade passou a se concentrar no atendimento das necessidades das grandes propriedades agrícolas. Outra reforma importante foi a do setor bancário e do sistema financeiro. A abertura da conta de capitais permitiu o afluxo de recursos externos e a dinamização de um novo mercado, com a entrada de bancos internacionais e a sofisticação das operações nos mercados de capitais e financeiro.

Arrocho salarial e esgotamento do modelo
As questões associadas ao chamado “mercado de mão de obra” foram resolvidas de forma bem menos livre e democrática. Nesse caso, o Estado foi chamado a intervir de forma mais incisiva, “manu militari” mesmo. As exigências do capital em relação à força de trabalho foram “resolvidas” à custa de prisão, exílio e assassinato de suas principais lideranças e da transformação da atividade sindical em caso de segurança nacional e de polícia. Com isso, todas as conquistas obtidas no período anterior foram praticamente anuladas e o processo de concentração da renda e de acirramento das desigualdades sócio-econômicas voltaram a se fazer presentes na sociedade chilena. Dessa forma, a variável “preço do trabalho” foi reduzida para atender aos interesses do empresariado.

As dificuldades derivadas da questão fiscal e do balanço de pagamentos foram solucionadas por meio da ajuda econômica e financeira do governo norte-americano. O déficit público elevado e os resultados negativos nas contas externas foram atenuados pela ação cooperativa vinda de Washington, que conferia à relação diplomática e comercial com Santiago um “status” diferenciado. As exportações foram asseguradas e as linhas de financiamento para as importações contavam com apoio dos EUA.

Esse quadro de controle político-social por meio da ditadura feroz e de apoio econômico do grande irmão do norte permitiu que o governo dirigido por Pinochet atravessasse uma década sem muita turbulência. A experiência neoliberal contava com a força das baionetas para evitar críticas ou a manifestação de descontentamentos. Porém, a crise internacional no começo dos anos 80 terminou por chegar também ao espaço chileno. E as dificuldades advindas do setor externo marcaram o fim da “tranqüilidade” para a condução da política econômica conservadora.

(*) Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Especial/Diario-da-Nova-Bolivia/Golpe-no-Chile-economia-e-politica/143/28556

A difícil democracia na América Latina

Ladislau Dowbor

Allende agiu rigorosamente dentro da lei, foi um presidente que cumpriu a constituição do seu país. E cumpriu com igual rigor o programa para o qual foi eleito. Este programa envolvia essencialmente reduzir as desigualdades. E reduzir as desigualdades implica evidentemente não só distribuir a renda, mas assegurar acesso à terra, democratizar as relações de trabalho nas empresas, utilizar as matérias primas naturais – em particular o cobre – para que sirvam ao desenvolvimento do país e não apenas ao consumo de luxo de intermediários nacionais e ao fortalecimento de países mais ricos, em particular os Estados Unidos. Foi o suficiente para que fosse derrubado e morto, seguindo-se o elenco tétrico de assassinatos, sequestros, tortura e expropriações que conhecemos. (nota 1) 

Tudo foi feito em nome da defesa da democracia. Instalar uma ditadura e governar acima das leis em nome da democracia é em si impressionante. Curiosas democracias latino-americanas: se um governo decide governar democraticamente, ou seja, assegurar a função social da propriedade, reduzir as desigualdades, promover os direitos básicos de acesso à saúde, educação, cultura e semelhantes, é derrubado. Mas se, ainda que ostentando um programa progressista, mantém uma política de defesa dos privilegiados de sempre, ou seja, se não aplicar a constituição nem os preceitos democráticos, poderá sim continuar a governar. É uma variedade particular de democracia que se derruba apenas se quiser ser democrática, que se mantém apenas se não se usa. Na prática, é defesa dos privilégios na lei ou na marra.

Os Estados Unidos se tornaram o principal vetor de reprodução da desigualdade e de sobrevivência das oligarquias na América Latina. Somoza podia ser um ditador, mas estava do bom lado. Um comentário famoso de um empresário na época era que “he’s a son of a bitch, but he’s our son of a bitch”, que dispensa tradução. A maior democracia do mundo tornou-se a maior defensora de ditaduras. Hoje, com a abertura progressiva dos documentos do Congresso americano, fica bem documentada a intervenção americana no Chile, no Brasil e tantos outros países. Em nota para o embaixador americano em Santiago, Helms, diretor da CIA, escrevia: “Make the economy scream”, faça a economia gritar. Obedientemente, as dondocas de Santiago saiam à rua para o “panelaço”. Até o Irã teve recentemente direito a desculpas, pela derrubada do democraticamente eleito Mossadegh, gerando um caos político que dura até hoje.

Havia, naturalmente, a grande justificativa, o comunismo. Estava-se salvando o mundo livre. Hoje, com as análises mais objetivas do passado recente, se constata a que ponto era um espantalho que justificava tudo, e não uma realidade. A própria facilidade com que se impuseram os regimes militares em todos os países mostra a que ponto a ameaça era fictícia. Cuba, aliás, não tinha nenhum objetivo de se tornar comunista até ser tão pressionada pelos Estados Unidos, com invasão, atentados e bloqueio, que foi forçada para os braços da União Soviética como forma de sobrevivência. O que Castro tinha no horizonte político era justiça econômica e social. Goulart foi apresentado como ameaça comunista! Stephen Kinzer apresenta um excelente estudo comparativo de algumas dezenas de golpes ou invasões protagonizados durante o século XX pelos Estados Unidos, e constata que se tratava em geral de se opor não a comunistas mas a nacionalistas que queriam utilizar os seus recursos para os seus próprios povos. (nota 2) 

Há alguns anos me pediram para avaliar políticas sociais na Guatemala, no quadro de uma pesquisa do Unicef. Nas minhas reuniões com movimentos sociais guatemaltecos, organizados pelo escritório local das Nações Unidas, só tinha jovens. A velha guarda, lideranças indígenas, sindicais, até feministas, tinham sido liquidadas, basicamente por milícias e esquadrões da morte financiadas pelos Estados Unidos, através entre outros da United Fruit, hoje rebatizada, a conselho das empresas de imagem corporativa, como Chiquita. Mataram 200 mil pessoas, 35 mil estão desaparecidas. O mesmo Stephen Kinzer publicou uma pesquisa detalhada sobre o envolvimento americano na Guatemala. (nota 3)

Hoje, é claro, temos o terrorismo. Este Bin Laden foi um achado. Permite aos fanáticos de um lado jogarem gasolina na vontade incendiária de outro, e a direita conservadora americana renova a sua justificativa de espionar, invadir, assassinar com drones – é prático, permite travar a guerra sem precisar pisar no território alheio – tudo em nome de nos proteger dos terroristas que nos querem matar. No Iraq se constituiu uma rede de centros de tortura e esquadrões da morte, coordenada pelo mesmo militar que montou um sistema similar em El Salvador. Abu Ghraib, Guantânamo se tornaram centros oficiais de tortura, frequentemente terceirizada no Mossad israelense ou em serviços de países amigos.

As pessoas não têm a dimensão das proporções. Acho o atentado das torres de Nova Iorque uma tragédia, sobretudo porque justifica mais tragédias. Mas temos hoje um bilhão de pessoas que passam fome, dentre elas 180 milhões de crianças, e destas entre 10 e 11 milhões morrem de fome ou de doenças conexas todo ano. As crianças mortas são o equivalente de oito atentados de Nova Iorque por dia. Se se gastasse um décimo do que se gasta com o terrorismo…

Por trás de cada atentado, de cada figura heroica que tentou trazer uma vida decente, democracia e justiça social para o seu povo, os Allende, Lumumba, Cabral, Arbenz, Luther King e tantos outros, se ergue uma imensa muralha de hipocrisia, de justificativas absurdas para o eterno adiamento da democratização efetiva das nossas sociedades.

Notas


1) Para os detalhes do golpe, ver o excelente artigo de Hugh O’Shaughnessy, no Guardian, 7 de set. de 2013. Além de testemunha ocular, é autor de um dos melhores livros sobre o drama, Pinochet: the Politics of Torture. New York University, 2000 http://www.theguardian.com/world/2013/sep/07/chile-coup-pinochet-allende

2) Stephen Kinzer – Overthrow: America’s Century of Regime Change, from Hawai to Iraq, Times Books, New York, 2006, Ver resenha em http://dowbor.org/2006/07/overthrow-americas-century-of-regime-change-from-hawaii-to-iraq-golpe-de-estado-um-seculo-de-derrubada-de-regimes-de-hawai-ate-o-iraque-384-p.html/

3) Stephen Kinzer – Bitter Fruit: the untold story of the American coup in Guatemala, New York, David Rockefeller Center, 2005 (expanded edition).

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Especial/Diario-da-Nova-Bolivia/A-dificil-democracia-na-America-Latina/143/28560

Quarenta anos depois

José Luís Fiori

“Aprendam a lição… (porque) muito mais cedo do que tarde, se abrirão novamente as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.. Tenho a certeza que meu sacrifício não será em vão.”
Salvador Allende, às 9,30 horas da manhã do dia 11 de setembro de 1973.

O golpe militar, a morte de Salvador Allende e o fim do governo da Unidade Popular, na manhã nublada, fria e melancólica de Santiago do Chile, daquele 11 de setembro de 1973, foi um momento trágico da história política da esquerda latino-americana, e foi também um momento de mudança irreversível do pensamento crítico e progressista do continente.

Nos anos 60, e até o início da década de 70, do século passado, América Latina viveu um momento de intensa criatividade intelectual e política. Foi o período áureo da revolução cubana e de sua influência sobre os movimentos de luta armada do continente, em particular, no Brasil, Uruguai e Argentina, e um pouco mais tarde, na América Central. Foi o tempo do reformismo militar de Velasco Alvarado, no Peru, e de Juan Jose Torres, na Bolívia; da volta do peronismo e da e da vitória de Juan Domingos Peron, na Argentina; da primeira experiência reformista democrata-cristã, na Venezuela, e acima de tudo, do “reformismo cepalino”, de Eduardo Frei, e do “socialismo democrático”, de Salvador Allende, no Chile. Tendo como pano de fundo, como desafio político e intelectual, o “milagre econômico” do regime militar brasileiro. Neste período, Santiago transformou-se no ponto de encontro de intelectuais de todo mundo, e virou o epicentro do que talvez tenha sido o período mais criativo da história políticas e intelectual latino-americana, do século XX. Revolucionários e reformistas, democrata-cristãos, socialistas, comunistas e radicais, tecnocratas e intelectuais, líderes sindicais, sacerdotes, artistas e estudantes discutiam – a todas as horas e em todos os cantos da cidade – sobre a revolução e o socialismo, mas também, sobre o desenvolvimento e subdesenvolvimento, industrialização e reforma agrária, imperialismo e dependência, democracia e reformas sociais, e sobre a própria especificidade histórica do capitalismo latino-americano.

Por que Santiago? Porque o Chile foi o único país do continente onde se tentou – de fato – combinar democracia com socialismo, nacionalizações com capitalismo privado, e desenvolvimentismo com reforma agrária, durante o período da Frente Popular, entre 1938 e 1947, e durante o governo da Unidade Popular, entre 1970 e 1973, mas também, de certa forma, durante o governo democrata-cristão, de Eduardo Frei, entre 1964 e 1970. Na década de 1930, os socialistas e comunistas chilenos formaram uma Frente Popular com o Partido Radical, venceram as eleições presidenciais de 1938, e depois foram reeleitos mais três vezes, antes de serem separados pela intervenção norte-americana, no início da Guerra Fria, em 1947. Os governos da Frente Popular chilena, sob a liderança do Partido Radical, colocaram sua ênfase nos programas de universalização da educação e da saúde publica, mas também na infraestrutura, no planejamento e na proteção do mercado interno e da indústria. Mas foi só em 1970, que o governo da Unidade Popular propôs explicitamente um projeto de “transição democrática para o socialismo”, como estratégia de desenvolvimento e sem destruição da economia capitalista. Antes de Allende, os democrata-cristão “chilenizaram” o cobre, e começaram a reforma agrária, mas o governo da UP acelerou a reforma agrária e radicalizou a nacionalização das empresas estrangeiras produtoras de cobre, e foi além disto, ao propor criar um “núcleo industrial estratégico”, de propriedade estatal, que deveria ser o líder da economia capitalista e o embrião da futura economia socialista. Este foi, aliás, o pomo de discórdia que dividiu a esquerda durante todo o governo da Unidade Popular, chegando até o ponto da ruptura, entre os que queriam limitar as estatizações industriais aos setores estratégicos da economia, e os que queriam estendê-las, até originar um novo “modo de produção”, sobre a hegemonia estatal. Pois bem, este projeto absolutamente original de “transição democrática para o socialismo”, do governo da Unidade Popular foi interrompido pelo golpe militar do general Pinochet, com apoio decisivo dos EUA e do governo militar brasileiro.

Mas como previu Salvador Allende, no seu último discurso, “muito mais cedo do que tarde”, o Partido Socialista voltou ao governo do Chile, em 1989, aliado com os democrata-cristãos. Só que naquele momento, os comunistas chilenos haviam sido dizimados, e os socialistas já haviam aderido ao consenso neoliberal, hegemônico durante a década de 90, e haviam deixado de lado os seus sonhos socialistas. Uma década depois, entretanto, no início do século XXI, a esquerda avançou muito mais e conquistou o governo de quase todos os países da América do Sul. E nesta hora, um grande numero de jovens das décadas de 60 e 70, que escutaram as últimas palavras de Allende, no Palacio de la Moneda, foram chamados a governar. Por todo lado, em vários pontos da América do Sul, a esquerda voltou a discutir sobre o socialismo, o desenvolvimentismo, a igualdade e as novas estratégias de transformação social, para o século XXI. Mas depois de uma década, a esquerda latino-americana se deu conta que a palavra “socialismo’ hoje tem conotações absolutamente diferentes nas Montanhas Andinas, nas Grandes Metrópoles, nos pequenos povoados, ou nos vastos campos ocupados pelo sucesso exportador do agrobusiness; que o “desenvolvimentismo” se transformou num projeto anódino e tecnocrático, desprovido de qualquer horizonte utópico; que defender a “indústria” ou a “re-industrialização”, virou um lugar comum da imprensa, que pode significar qualquer coisa segundo o economista de turno; e o “reformismo social” foi dissolvido num conjunto de políticas e programas desconexos originários do Banco Mundial, mais preocupado com o seu “custo-efetividade” do que com a luta pela igualdade social.

Somando e subtraindo, hoje, exatamente quarenta anos depois da morte de Salvador Allende, o balanço é muito claro e desafiador: a geração de esquerda dos anos 60 e 70 chegou finalmente ao poder, mas já não tem mais do seu lado a força do sonho e da utopia que levou Salvador Allende à resistência, ao silêncio e à morte, naquela manhã violenta e inesquecível do dia 11 de setembro de 1973, na cidade nublada, fria e melancólica de Santiago do Chile.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Especial/Diario-da-Nova-Bolivia/Quarenta-anos-depois/143/28558

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