Amazônia ano 1000
Na Amazônia de mil anos atrás, civilizações experimentavam um florescimento cultural

Os índios enawere-nawe têm parentesco com civilizações que se estabeleceram na região do rio Xingu ao redor do ano 1000
Se pudéssemos voltar no tempo e visitar a Amazônia de mil anos atrás, veríamos um mundo diferente. Não haveria a grande área desmatada e ocupada por pastagens e cultivos do sul e do sudeste da região, no atual Pará. Em trechos hoje cobertos por selvas densas, se destacariam sinais claros de ocupação humana: grandes aldeias ou mesmo cidades, cercadas de áreas de roças e de matas secundárias, ligadas umas às outras por largos e longos caminhos. Em alguns locais, centros cerimoniais desenhados por alinhamentos de pedra estariam dispostos em circulos. Em pontos distantes como a ilha de Marajó é do Acre, por exemplo, aterros artificiais eram espaços de moradia e rituais. E, no que é a Amazônia boliviana, poderíamos contemplar um labirinto de diques, barragens e canais distribuído por milhares de quilômetros quadrados.
Ao contrário da imagem corrente de que a Amazônia sempre foi indômita e escassamente ocupada, a maior floresta tropical do planeta estava, no ano 1000, repleta de sociedades indígenas. Algumas eram hierarquizadas, lideradas por chefes supremos, capazes de comandar um exército de guerreiros. Outras estavam resumidas a grupos pequenos e nômades de caçadores e coletores que usavam zarabatanas para matar macacos e outros animais. Acima de tudo, tais sociedades eram compostas de povos que falavam línguas variadas – mais diferentes entre si do que são hoje, por exemplo, o português e o russo.
Em alguns aspectos, a Amazônia do ano 1000 não era diferente da Europa naquele mesmo período. O francês Jacques Le Goff, um dos mais importantes historiadores da Idade Média, mostrou como seria possível identificar na Europa áreas de bosque entremeadas a pequenas cidades, algumas delas fortificadas, conectadas por redes de caminhos em que ocorria o comércio. Mas uma diferença entre a Amazônia e o Velho Mundo era que, devido à escassez de rochas, a matéria-prima para a construção na floresta sempre foi a terra. É por isso que sítios arqueológicos com aterros ou valas são tão comuns na região. Muitos deles se encontram ainda cobertos pelas matas que cresceram de novo após o início da colonização europeia, quando houve queda brusca na população nativa por causa da propagação de doenças, da guerra e da escravidão.
Uma jornada ao longo do rio Amazonas pode ser reveladora de como a população amazônica – talvez mais de 5 milhões de pessoas – desapareceu de forma abrupta: desde Macapá, perto da foz, até Tabatinga, na fronteira com a Colômbia e o Peru, no alto Solimões, despontam incontáveis sítios arqueológicos, alguns deles ocupados até o início do período colonial. Por outro lado, o número de terras indígenas nessas mesmas áreas é pequeno, com exceção da região do alto Solimões. A explicação é simples: a calha do Amazonas e do Solimões estava repleta de índios até o século 16, mas eles foram os primeiros a perecer com a colonização. Atualmente, as maiores terras indígenas no Brasil ficam longe da calha do Amazonas, em locais como o alto rio Negro, Roraima, Acre, Rondônia ou o alto Xingu.
Enquanto a europa vivia a Baixa Idade Média e lutava para reconquistar a península Ibérica dos árabes, os povos da Amazônia vivenciavam, nessa mesma época, profundo florescimento cultural. Alguns séculos antes de a Renascença surgir na Itália, cerâmicas com padrões gráficos sofisticados eram produzidas em Marajó e nas regiões de Manaus e Santarém – esta última, talvez, a cidade mais antiga do Brasil. A civilização marajoara protagonizou quase mil anos de história, tendo desaparecido antes da chegada dos europeus. Seu apogeu, no entanto, parece ter ocorrido ao redor do ano 1000. Esculturas de pedra eram esculpidas na foz do rio Trombetas, próximo da atual Oriximiná, onde havia também centros de produção de muiraquitãs, pequenas esculturas lapidadas em pedra polida em forma de animais ou seres humanos. No alto Xingu, grandes aldeias circulares eram cons-truídas com urbanismo igualmente sofisticado e inovador, assim como outras aldeias floresciam no Acre, marcadas com estruturas geométricas agora conhecidas como geoglifos.
A pesquisa em sítios arqueológicos é o caminho óbvio ao estudo dessas diferentes histórias de ocupação. No entanto, resistem no presente amazônico outras evidências, às vezes tão antigas quanto os próprios sítios, que também podem nos revelar dados sobre o passado. Um exemplo: as matas de castanhais abundantes. Quem já andou em um castanhal sabe que essa é uma jornada quase mística: as árvores são imensas e ultrapassam a altura média da copa da floresta, pilhas da casca da fruta da castanha (os ouriços) espalham-se pelo chão e animais como as cutias podem ser vistos correndo de um lado para outro. Uma castanheira demora décadas para crescer e começar a frutificar. Muitos castanhais têm centenas de anos de idade.
Sabemos hoje que a dispersão dessas árvores ocorreu a partir de um centro original no leste do Pará. E também sabemos que existem na natureza apenas dois animais que conseguem quebrar a casca do ouriço e dispersar sua castanha: a cutia e o Homo sapiens. Assim, é certo que a dispersão dos castanhais se deu por meio da atividade humana. Ao mesmo tempo, a baixíssima variabilidade genética entre castanheiras localizadas em pontos distintos da Amazônia, como se os espécimes tivessem sido clonados, sugere que o processo de dispersão foi recente e começou 2 mil anos atrás – em sincronia com o processo de florescimento cultural, indicado nos sítios. Ou seja, castanhais são não apenas produto da natureza mas também resultado concreto da presença humana ancestral na Amazônia.
Entre outros sinais visíveis de atividades antigas, talvez os mais conhecidos sejam as chamadas “terras pretas de índio”, os melhores marcadores arqueológicos do surgimento de modos de vida sedentários no passado amazônico. Trata-se de solos muito férteis, de coloração escura, sobre e sob o qual normalmente se dispõem milhares de fragmentos cerâmicos. Podem ser espessos e chegar a mais de 2 metros de profundidade. Devido a sua fertilidade, as áreas de terra preta são procuradas por agricultores contemporâneos, que reconhecem suas propriedades e sabem que existem ali melhores condições de cultivo.
Durante muito tempo, esses solos foram considerados “naturais” por cientistas. Apenas nos últimos 20 anos, graças às pesquisas pioneiras de Dirse Kern, do Museu Paraense Emilio Goeldi, demonstrou-se que os componentes químicos resultam de antigas atividades humanas. O fosfato, por exemplo, é oriundo dos ossos de animais ali depositados e dos fragmentos de carvão queimados à baixa temperatura. As terras pretas têm outra propriedade: são solos estáveis, capazes de manter por décadas ou séculos condições de alta fertilidade. Essa condição é uma anomalia em contextos equatoriais, onde, devido à ação das chuvas e da evaporação, os solos não conseguem preservar por muito tempo seus nutrientes.
É comum que solos tropicais sejam ácidos e pouco férteis. As terras pretas, por outro lado, têm pH quase neutro, são férteis e mantêm suas condições de fertilidade. Como explicar tal estabilidade? Não há ainda resposta satisfatória, mas a cada dia fica mais claro que a concentração de fragmentos de cerâmica sustenta uma estrutura física – uma espécie de “esqueleto” que contribui para que o solo se mantenha estável.
Arqueólogos aceitam sem grande problema a ideia de que a Amazônia foi densamente ocupada no passado e que as populações antigas da região deixaram sinais de seus modos de vida nos sítios arqueológicos e nas paisagens contemporâneas. No entanto, uma das questões mais importantes da arqueologia na Amazônia é tentar descobrir o tamanho da população que ocupou a região antes da chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis, no século 16. Essa área de pesquisa é chamada de paleodemografia.
“São manchas escuras no meio da terra clara”, escuto. Estou em São Paulo e, pelo telefone, analiso a descrição que meu aluno faz do sítio na cidade de Iranduba, perto de Manaus. “As manchas estão alinhadas e dispostas no solo como buracos de postes”, continua ele. O jovem arqueó-logo Eduardo Kazuo Tamanaha, que coordena as escavações, imagina ver vestígios de uma casa. Desconfio: essas casas não poderiam ter a estrutura alinhada na forma como ele me descreve… Todavia, a descoberta é em si uma notícia maravilhosa. Esse é justamente um dos objetivos da etapa de escavação: identificar e escavar vestígios de supostas moradias no sítio arqueológico Laguinho, algo que nos ajudaria a ter uma ideia da população local mil anos atrás.
O sítio Laguinho sempre me impressionou. Nós já havíamos escavado ali em outras oportunidades, ao lado de outro orientando, Márcio Castro. É um sítio de 25 hectares sobre um barranco com mais de 30 metros de altura que despenca sobre dois lagos da várzea na margem esquerda do rio Solimões, no Amazonas. O lugar é lindo, e o melhor período para as escavações é o seco mês de julho. A descoberta de Tamanaha foi inspiradora. Em julho de 2009, fui a campo acompanhar os trabalhos. Reuniam-se ali mais de 30 estudantes do Brasil e do exterior, distri-buídos em diferentes partes do sítio. Laguinho é tão grande e complexo que certamente voltaremos muitas vezes para lá. Seu perímetro está atualmente recoberto por uma plantação de mamão, além de pomares e áreas de mata. O lugar é como um mirante, de onde se veem o Solimões e seus baixios alagados. As várzeas de um rio de águas brancas como esse são ricas em peixes, pássaros e répteis. Os habitantes de Laguinho se aproveitavam dessa fartura de recursos, agora visível nos ossos de animais achados nas escavações.
Estar no alto do sítio Laguinho sempre me inspira a visualizar o passado. A imaginação voa longe. Na época de sua ocupação, os lagos que o cercam estavam todo o tempo cheios de canoas, com pessoas partindo ou chegando de suas roças ou de visita a outras aldeias na região. Nos caminhos que levavam da beira dos lagos ao alto do morro onde fica o sítio, homens e mulheres subiam e desciam carregando peixes, cestos com frutas – o açaí já era extraído – e animais caçados. Na parte alta, crianças corriam de um lado para outro, sujando seus pés na terra preta do chão.
Vestígios indicam que o sítio foi ocupado por pelo menos três povos, em intervalos distintos, do ano 400 ao 1300. A parte mais densa, a extremidade sul, fica em uma península: ali ainda há muitos fragmentos de cerâmica, visíveis até na superfície. E vários aterros artificiais, que chegam a quase 3 metros de altura, os quais serviam de base para a construção de malocas onde viviam famílias. Em 2006 e 2007, nós já havíamos estudado essas partes do sítio e, em 2009, decidimos escavar a área ao norte do istmo, onde a concentração de cerâmica é menor. O objetivo era entender o tamanho das casas para ter uma ideia do tamanho da população dessa pequena cidade. Foi quando Tamanaha encontrou a paliçada defensiva que me fez lembrar as cidades fortificadas da Europa.
Com a descoberta do alinhamento de manchas de buracos de postes no sítio Laguinho, parecia que, finalmente, identificaríamos sinais de casas ocupadas na periferia da cidade. Isso demonstraria certa estratificação social entre os ocupantes do sítio. Nas semanas subsequentes, continuamos a escavação e verificamos que o alinhamento era maior do que pensávamos: ao fim dos trabalhos, ele tinha mais de 40 metros de comprimento e atravessava um istmo que conecta a área central do sítio, que está numa península, à terra firme. Ou seja, o alinhamento não era de uma casa, mas sim de uma paliçada defensiva, uma cerca de madeira que fechava e protegia a área central da antiga aldeia. Como sempre ocorre na arqueologia, procurávamos uma coisa e encontramos outra, diferente.
Os dados obtidos no sítio Laguinho, por sua vez, devem ser combinados com os obtidos nos mais de 100 sítios já identificados pelo Projeto Amazônia Central, coordenado por mim, para que possamos esboçar um quadro paleodemográfico mais elaborado da região. Eles indicam, conforme a escavação de vestígios de paliçadas similares de outros sítios, que a época do ano 1000 foi marcada por conflitos nessa área.
Da amazônia central ao oceano Atlântico, perto do qual se localizam importantes centros cerimoniais – caso do Rego Grande, no Amapá -, erigidos centenas de anos antes da catedral de Notre-Dame, em Paris, o rio Amazonas se transforma em uma via fluvial altamente ocupada.
Ao longo da desembocadura do rio Tapajós, ao redor do ano 1000, no mesmo local em que hoje está Santarém, havia talvez outra cidade, parcialmente destruída pelo próprio crescimento de sua equivalente moderna. Se pensarmos sob esse aspecto, Santarém é a cidade mais antiga do Brasil e talvez a única cujas origens remontam a nossa história pré-colonial. Nesse sentido, ela se junta à companhia ilustre de Cusco, no Peru, antiga capital do Império Inca, ou da Cidade do México, erguida sobre a Tenochtitlán dos astecas. As semelhanças com essas duas cidades, no entanto, dizem respeito a suas histórias: Cusco e Tenochtitlán eram capitais de impérios ou Estados centralizados que abrigavam a nobreza, os sacerdotes e uma burocracia organizada.
Esse não foi o caso de Santarém. Até o momento, não se identificaram ali, ou em qualquer outro lugar da Amazônia, estruturas que indicassem algum grau de centralização política ou desigualdade social compatíveis com Estados ou impérios. Mesmo assim, a arqueologia de Santarém mostra um registro bem diferente que a hipótese de limitações ecológicas nos levaria a supor: as populações que ali viviam, conhecidas como tapajônicas, permaneceram séculos no mesmo local. Eram, portanto, sedentárias.
Embora em estilo diferente, os tapajônicos produziram cerâmicas tão sofisticadas quanto as marajoaras. Nessa mesma região, na margem oposta do rio Amazonas, próximo às cidades de Óbidos e Oriximiná, perto da foz do rio Trombetas, há sítios onde se encontraram cerâmicas parecidas, embora não idênticas, às tapajônicas. Esses sítios são, também, ricos em outros achados: raríssimas estatuetas de pedra polida, de até 50 centímetros de altura, com representações de seres humanos e animais, sugerindo algum tipo de transe xamânico. Restam poucas estatuetas desse tipo conhecidas. Algumas estão em museus brasileiros, como o Emilio Goeldi, em Belém, o Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. A maior coleção, ou talvez a mais bela, está longe do Brasil, embora muito bem guardada – no Museu das Culturas do Mundo de Gotemburgo, na Suécia. Foram coletadas e enviadas para lá na década de 1920 pelo etnólogo alemão Curt Nimuendajú.
As estatuetas da região de Oriximiná, além de sua beleza, têm outro atributo intrigante: a forte semelhança com as estruturas megalíticas encontradas na região de San Augustín, nos Andes colombianos. San Augustín fica a milhares de quilômetros de Oriximiná, embora se encontre tecnicamente próximo às cabeceiras do rio Caquetá, um afluente do rio Solimões. As estátuas de San Augustín são grandes, podem ter 2 metros de altura. Como explicar tais semelhanças, uma vez que nada parecido foi encontrado ao longo dos rios Caquetá, Solimões e Amazonas?
Até o momento, o tema não foi estudado com cuidado. As semelhanças indicam uma possibilidade interessante: o fato de que, nos últimos séculos anteriores à colonização europeia, ocorria intensa circulação de ideias, pessoas e bens atravessando fronteiras culturais, políticas e étnicas pela América do Sul. As semelhanças na iconografia de objetos produzidos em locais tão distantes poderiam ser entendidas com base nessa hipótese. Fora da Amazônia, no sul do Brasil, é sabido que aventureiros portugueses, como Aleixo Garcia, ainda no século 16, acompanharam índios guaranis em ataques a guarnições incaicas no distante território da atual Bolívia.
É também na região de Santarém que se encontraram o que talvez sejam as cerâmicas mais antigas das Américas, nos sítios de Taperinha e da Caverna da Pedra Pintada, com datas que podem chegar a 6000 a.C., mais antigas que as encontradas na foz do Amazonas. Tradicionalmente, arqueólogos correlacionam o início da produção cerâmica com o advento da agricultura. Na América do Sul, tal correlação não é tão simples: na Amazônia e em outras partes, parece claro que o início da domesticação de plantas antecedeu o início da produção de cerâmica. Em Caral, o centro cerimonial mais antigo das Américas, no litoral do Peru, construído cerca de 5,5 mil anos atrás, dispõe-se uma série de estruturas monumentais de pedra – evidências de agricultura no vale do rio Supe, próximo do qual está o sítio -, mas não há cerâmica associada.
Até hoje é difícil plantar na Amazônia. Quando se pensa na agricultura pré-colombiana, é comum que se esqueça de um aspecto tecnológico fundamental: não havia instrumentos de metal para a derrubada de áreas de cultivo. Todo o trabalho de derrubada, limpeza, preparação e cultivo era feito com objetos de pedra lascada ou polida, madeira, mãos e fogo.
Estudos comparativos realizados por antropólogos mostram que o investimento de tempo na derrubada de árvores com machados de pedra é muito superior ao feito com machados de metal. Assim, faz sentido pensar que os assentamentos indígenas da Amazônia pré-colonial eram estáveis e sedentários. Os dados do Projeto Amazônia Central corroboram essa hipótese. Datações por carbono 14 realizadas em escavações de diferentes sítios mostram que alguns foram ocupados por séculos, aparentemente de maneira contínua. Nada, portanto, mais distante da imagem de que tais sítios teriam sido ocupados por populações nômades com grande mobilidade.
Os povos antigos da Amazônia tinham consciência da alta fertilidade dos solos de terra preta. Todavia, em muitos sítios arqueológicos tais solos estão associados apenas a áreas de habitação, não de cultivo. Isso quer dizer que, em vários contextos, as terras pretas não eram utilizadas na agricultura, pelo menos não na intensiva. Se esses solos eram férteis, mas não aparentemente usados na agricultura, como explicar sua formação e posterior uso?
Talvez a melhor hipótese seja a de que as terras pretas se constituíram como consequência de um processo de mudança que teve a ver com o estabelecimento da vida sedentária na bacia Amazônica. Tal processo ocorreu, ao longo da calha do Amazonas, há cerca de 2 mil anos, que é a idade dos sítios com terras pretas mais antigas nessa área. No entanto, há locais da Amazônia onde elas são ainda mais velhas, como a bacia do alto Madeira, em Rondônia. Nessa região, o pesquisador Eurico Miller escavou depósitos de terras pretas, datados em 4,5 mil anos, associados a camadas arqueológicas com abundantes vestígios de lâminas de machado de pedra polida. A presença das lâminas indica aumento na derrubada de árvores e abertura de clareiras, isto é, ações de manejo mais intensas da floresta. A associação desse tipo de artefato com a formação de terras pretas mostra que nessa época ocorreu ali um processo de sedentarização que depois se espalhou por outras áreas da Amazônia. É possível que não seja coincidência que a bacia do alto Madeira tenha sido também a área de domesticação de plantas economicamente importantes, como a mandioca e a pupunha, bem como o centro de origem e dispersão dos grupos falantes de línguas da família tupi-guarani, dentre os quais os tupinambás e os guaranis que ocupavam o litoral atlântico e o sul do país na época do início da colonização europeia.
Se as terras pretas não foram intensamente cultivadas, temos então um paradoxo interessante, que diz respeito às visões construídas pela ciência e pelo senso comum ao longo dos anos acerca da Floresta Amazônica e de seus povos. Tais visões são baseadas em perspectivas de escassez: na Amazônia ancestral, a ausência do Estado, da agricultura e da centralização política foi interpretada por muitos arqueólogos como indicador de uma história incompleta – como se as sociedades indígenas da Amazônia fossem intelectualmente incapazes se comparadas a outras sul-americanas, como aquelas que, por exemplo, ocuparam os Andes centrais. No entanto, o rico legado artístico que essas sociedades nos deixaram, visíveis nos artefatos que produziram, mostra que essa perspectiva está errada.
Uma herança ainda mais rica pode ser apreciada no estudo de suas práticas de vida milenares, estáveis e bem adaptadas às condições ecológicas complexas da Amazônia. Nossa sociedade, apesar dos avanços tecnológicos admiráveis que tem alcançado, não descobriu ainda uma fórmula que reproduza, com o mesmo sucesso, certas formas sofisticadas de conhecimento, hoje enterradas nos sítios arqueológicos da região.
As terras pretas ocultam um tesouro de informações sobre os modos de vida ancestrais, além de outros sinais mais sutis do processo de ocupação dos sítios. Para entender esses sinais, serão necessários ainda muitos anos de pesquisas na Amazônia. Rios inteiros, como o Juruá, mal foram estudados. À medida que as pesquisas avancem, novas surpresas sobre o passado surgirão. Porém, apesar do ritmo lento com que trabalham em campo, escavando sepultamentos ao longo de dias sob o sol escaldante dos trópicos, arqueólogos na Amazônia apostam agora uma corrida contra o tempo: a velocidade frenética de ocupação da região coloca pressão sobre o patrimônio arqueológico. A ocupação desenfreada da Amazônia pode destruir não só o seu futuro mas também o seu passado.
Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/materias/amazonia-ano-1000?pw=1
Reserva de carbono
A Amazônia emite toneladas de CO2 por ano, mas absorve boa parte disso. Esse ciclo pode chegar ao fim

Grandes árvores são imensos depósitos de carbono. A decomposição da biomassa também é responsável pela liberação desse elemento, principalmente na forma de gás carbônico. Uma parcela do carbono que compunha a estrutura da árvore se deposita no solo.
São 7 da manhã no centro de Manaus, no coração da Floresta Amazônica, mas o cenário é típico de uma metrópole. Ruas e avenidas estão coalhadas de carros, ônibus e caminhões, a maioria queimando combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel. E, com isso, liberando na atmosfera dióxido de carbono, o mais conhecido dos gases de efeito estufa. Estamos a caminho da Estação Experimental de Silvicultura Tropical, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), distante 90 quilômetros da capital do Amazonas. Reduzir as causas e os efeitos do aquecimento global tem sido um dos maiores desafios da comunidade científica internacional. Não é diferente na Floresta Amazônica, em que o desmatamento é o grande vilão no que diz respeito à emissão de gases nocivos – a fumaça proveniente das queimadas libera o carbono armazenado na madeira. No ciclo natural do planeta, metade do carbono enviado à atmosfera é absorvida pelos oceanos, pela vegetação e pelo solo. A outra parcela estaciona no ambiente. É aí que mora o perigo, pois a influência do homem tem feito a concentração de CO2 aumentar de forma alarmante.
O acúmulo de CO2 na atmosfera começou a intensificar-se a partir da Revolução Industrial, no fim do século 18, época em que o homem passou a utilizar combustíveis fósseis – carvão mineral, gás natural, petróleo – para movimentar as fábricas. Com o tempo, o uso desse tipo de energia massificou-se. Durante toda a história, até os anos que antecederam as mudanças tecnológicas advindas das transformações industriais, o ar nunca teve mais que 275 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono. Em setembro deste ano, a taxa já havia saltado para 390 ppm – acima de 350 ppm, que é um limite seguro defendido por boa parcela da comunidade científica. O problema é que, quanto mais CO2 na atmosfera, maior é a possibilidade de aumento na temperatura média do planeta nas próximas décadas.
Os dados do último inventário brasileiro, divulgado no fim de 2010, dão conta de que o país é responsável pela emissão de 1,6 bilhão de toneladas de CO2 ao ano, o que nos coloca entre os maiores emissores globais. Ao contrário do que acontece nos dois maiores emissores, China e Estados Unidos (em que a queima de combustíveis fósseis é o grande vilão), nossas pedras no sapato são o desmatamento e as queimadas, que dão origem a 75% das emissões de dióxido de carbono, que ocorrem sobretudo na Amazônia. Se o Brasil controlasse ou zerasse o desflorestamento, já estaria dando enorme contribuição no esforço para reduzir a concentração de CO2.
Por outro lado, o país também abriga um gigantesco sorvedouro de carbono: a própria Floresta Amazônica, pois a vegetação precisa de gás carbônico para se alimentar e crescer. Além disso, há muito carbono estocado no solo, nos rios e nos igarapés do norte do país. Mas quanto cada árvore acumula de carbono? Qual é de verdade o estoque total da floresta? Com a expansão da pecuária, o que aconteceu com o carbono que estava no solo quando bois tomam o lugar das árvores? Encontrar respostas a essas e outras perguntas é um dos desafios dos pesquisadores que trabalham na região.
Vencemos o trânsito da cidade. Estamos agora na BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a capital de Roraima. A exuberância da floresta se impõe pela janela do carro. É fim de julho. O dia está claro e, como de costume, muito quente. A luminosidade me faz recordar da conversa que tive com o agrônomo Jean Ometto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ocorrida algumas semanas antes de meu desembarque no Amazonas. “A radiação solar é fundamental para que a vegetação realize a fotossíntese, um dos mecanismos mais maravilhosos da natureza. Por um processo bioquímico, cada folhinha, cada planta, cada árvore retira o carbono – um elemento essencial à vida – e transforma esse material inorgânico em orgânico. É assim que a planta produz glicose, seu alimento. É o primeiro passo de uma série de transformações metabólicas e produção de outros compostos. Assim a floresta cresce. Dessa forma ocorre a transferência do carbono da atmosfera para a biosfera.” Esse mecanismo natural explica por que a Amazônia, cuja vegetação ocupa uma área de 6,2 milhões de quilômetros quadrados, é um grande sorvedouro de carbono.
Material vasto, portanto, para os pesquisadores da estação experimental do Inpa, entre eles Niro Higuchi, premiado engenheiro florestal que participou da elaboração do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Apesar de estar no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) desde 1980, Higuchi ainda carrega no sotaque de sua cidade natal, Chavantes, no interior de São Paulo. É um cientista apaixonado pela floresta, capaz de interromper uma explicação para demonstrar sua admiração por um frondoso angelim-pedra plantado na estação ou fechar os olhos na tentativa de identificar qual espécie de pássaro está cantando.
Para Higuchi, é preciso repassar essa mesma devoção para as novas gerações de pesquisadores. Por isso, há oito anos ele nincoordena um curso de manejo florestal, que leva estudantes de graduação para uma temporada na estação. “Neste ano, recebemos 36 alunos de engenharia florestal de 14 estados e 19 instituições de ensino superior.”
No mato, os jovens aprendem a calcular a quantidade de carbono de uma árvore – 95% da madeira é composta de derivados de carbono, tais como lignina, celulose e hemicelulose. Para isso, é preciso derrubar uma árvore, serrar seu tronco em várias partes e cortar os galhos. Depois é necessário extrair toda a água desse material para, então, pesar a biomassa. “Esses estudos nos levaram a concluir que uma árvore acumula, em carbono, uma média de 48,5% de seu peso”, explica Higuchi. Para atingir essa precisão, o pesquisador e sua equipe derrubaram nos últimos anos 1 728 árvores (a mais leve com 5 quilos e a mais pesada com 30 toneladas) na estação experimental de Manaus e em outras localidades, como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e Tomé-Açu, no Pará.
Minucioso, Higuchi desenvolveu também uma equação matemática para descobrir – sem precisar cortar – quanto cada árvore tem de carbono. “Basta saber seu diâmetro na altura do peito de um homem adulto para se chegar ao resultado”, diz. Simples assim. Esse parâmetro é essencial para estimar o total de carbono na floresta. Os estudos indicam que cada hectare amazônico contém cerca de 600 árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro – apenas espécimes com essa espessura são contabilizados. Diante disso, a Amazônia estoca hoje em torno de 50 bilhões de toneladas de carbono em sua vegetação. “Chegamos a esse valor ao extrapolar os dados coletados em 280 mil árvores do do Amazonas”, conta. A reserva, porém, pode ser ainda maior. “Daqui a cinco anos, usaremos essa mesma metodologia em outras regiões. Aí sim teremos uma visão mais clara do que acontece”.
A metodologia desenvolvida por Higuchi é valiosa. Se uma árvore de 100 quilos de carbono for queimada, ela acrescentará 367 quilos de CO2 na atmosfera. Baseado nos índices médios de desmatamento nos últimos 25 anos, o cientista acredita que a Amazônia emita por volta de 230 milhões de toneladas de gás carbônico ao ano. Mas quanto ela absorve? “Saber o número preciso é difícil. Acredito que aqui a vegetação fixe 1 tonelada de carbono por hectare ao ano. É uma média, claro. Como estimo haver cerca de 300 milhões de hectares de vegetação, creio que a Amazônia capte uma quantidade aproximada de 300 milhões de toneladas. Até que a floresta não é assim tão vilã nessa história, não é? O balanço é mais ou menos equilibrado. O que é emitido pelo desmatamento é neutralizado por meio do sequestro natural. Mas ninguém pode garantir que esse comportamento vai continuar nos próximos anos.” Até porque, se o desmatamento prosseguir, a emissão aumentará, reduzindo, portanto, a absorção.
“É por isso”, prossegue Higuchi, “que o Brasil comete um grave erro ao permitir que áreas de floresta sejam usadas pelo agronegócio.” Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), cerca de 15% do verde da Amazônia Legal foi dizimado entre 1994 e 2009, principalmente pelas queimadas que abrem espaço para pastos. “A Amazônia Legal, que corresponde a quase 60% do território brasileiro, contribui com 8% do produto interno bruto nacional. Mas ela polui três vezes mais que o resto do país. É muita poluição para pouca contribuição econômica. Em primeiro lugar, deveríamos zerar o desmatamento e depois investir em tecnologia, ou seja, tratar e fertilizar o solo em áreas já devastadas. Mas, em geral, o agricultor derruba uma floresta primária porque é mais barato.”
Higuchi acredita também ser preciso descobrir quanto a Amazônia troca de carbono com a atmosfera. Ou seja, quanto ela captura, armazena e expele. Para explicar isso, ele faz uma analogia: “Um ser humano adulto, com peso médio de 80 quilos, consome cerca de 3 quilos de alimentos sólidos e líquidos por dia. Mas não acumula tudo o que come. Parte do alimento vira energia e parte é eliminada. Com as árvores é a mesma coisa. Para fazer esse estudo, deveríamos isolar algumas e monitorar sua fotossíntese e sua respiração. Ainda não fazemos isso. Espero que algum dia um de meus alunos comece essa pesquisa”.
Volto a Manaus ao cair da tarde. Ainda na estrada, vejo pela janela do carro um dossel florestal com 30 metros de altura e começo a imaginar quanto cada uma daquelas árvores absorveu de carbono naquele dia. E como será em um futuro próximo se não desistirmos de queimar mais e mais combustíveis fósseis para mover veículos de passeio, ônibus, caminhões e gerar energia?
Algumas respostas podem ser encontradas no Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), que conta com uma rede de 11 torres distribuídas por vários pontos da selva. Elas têm 50 metros de altura e abrigam diversos instrumentos, localizados entre 20 e 30 metros acima da copa das árvores, que aferem os fluxos entre a superfície e a atmosfera. Para levantar os dados, a equipe de pesquisadores se vale de um método de nome complicado: covariância de vórtices turbulentos.
São instrumentos do tipo anemômetros ultrassônicos tridimensionais que analisam todas as informações contidas nesses vórtices (fluxos de ar). “Esses aparelhos fazem medidas em alta frequência, cerca de dez vezes por segundo. Com isso, consegue-se aferir os fluxos ascendentes e descendentes. E, ao mesmo tempo, quantificar quantas moléculas de CO2 passam pelos sensores”, explica o físico Antonio Ocimar Manzi, coordenador do LBA. “Durante o dia, com a fotossíntese, a copa das árvores funciona como grande esponja de gás carbônico. Sabemos disso porque, conforme as folhas o absorvem, a concentração do gás se reduz.”
Manzi explica que as medidas realizadas de dia são mais confiáveis do que as feitas à noite. Mesmo assim, é possível saber que as árvores amazônicas aceleram a produção de CO2 depois que o sol se põe, transportado para a superfície no dia seguinte. “Isso acontece porque só com a luz solar ocorre o aquecimento das massas de ar próximas à superfície terrestre.”
E tem mais. Como os instrumentos funcionam de forma contínua – todos os dias do ano, o tempo todo –, a coleta de dados permite aos pesquisadores saber o que acontece a cada momento e como isso se altera segundo variações diárias, alternância das estações do ano, condições climáticas. “Em 2005, quando a Amazônia passou por uma grande seca, a concentração de CO2 na atmosfera elevou-se muito, com índices superiores aos que a floresta pode sequestrar”, diz Manzi. Na ocasião, a floresta deixou de absorver carbono e passou a ser uma fonte emissora ainda maior. Alguns estudos apontam que, há seis anos, as emissões foram de 1,6 bilhão de toneladas. O mesmo aconteceu na seca de 2010, quando a biomassa morta chegou a 2,2 bilhões de toneladas.
Em poucos anos, outras respostas poderão ser encontradas em uma estrutura gigantesca a ser construída no coração da floresta, resultado de um projeto ambicioso de cooperação científica reunindo várias instituições de pesquisa do Brasil e da Alemanha. O projeto, batizado de Observatório Amazônico da Torre Alta, é uma parceria entre o Instituto Max Planck de Química, em Berlim, e o Inpa, em associação com a Universidade do Estado do Amazonas. A ideia é instalar uma torre de 320 metros de altura (semelhante à Eiffel, em Paris) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Atumã, 150 quilômetros a nordeste de Manaus e 50 quilômetros a sudeste da barragem de Balbina. “Ela deve ficar pronta no fim de 2012, e será um superlaboratório referência para as florestas úmidas. A torre terá instrumentos e sensores do solo até o alto, o que permitirá medidas de altíssima precisão em várias camadas da atmosfera”, revela Manzi. A 100 metros de distância e ao redor desse cimo principal, haverá ainda outras quatro torres menores, com 80 metros de altura. “Elas vão possibilitar a observação em tempo real. Iremos saber como as mudanças climáticas alteram os fluxos naturais e as interações entre a superfície e a atmosfera.”
E ainda tem o solo. Pouca gente no mundo reflete sobre o carbono ali aprisionado. Não é o caso do engenheiro florestal Carlos Alberto Quesada, também do Inpa. Beto Quesada, como é mais conhecido, conta que “estudos indicam que o primeiro metro de solo da Amazônia inteira tem em volta de 67 bilhões de toneladas de carbono. Acho esse número é baixo. Nas minhas contas, deve chegar a 73 bilhões”.
O solo amazônico é como esponja: absorve tudo o que cai nele. “Quando essa matéria orgânica morre, entra no solo, no qual sofre decomposição. Durante o processo, parte do carbono que havia é liberada como CO2, resultado da respiração dos micro-organismos. Mas o que sobrou penetra no solo e ali fica armazenado”, explica Quesada. Ninguém ainda sabe quanto é liberado de carbono por ano e quanto o solo absorve. Monitorar essas mudanças é complicado e pouca gente investiu nisso. “Um de meus trabalhos consiste em desenvolver linhas de base em florestas nativas que servirão de parâmetro para comparações em 20 ou 30 anos.”
Quesada alerta que os solos amazônicos, embora não sejam homogêneos (no oeste são mais férteis que no leste), são frágeis. Uma vez que se retira a vegetação de cima, sua capacidade produtiva é mínima. “Os solos mais pobres dependem da reciclagem da matéria orgânica. Quando se remove a floresta, a fonte de nutrientes vai embora. As raízes desaparecem. A fauna e os micro-organismos também deixam de existir, e o estoque de carbono que havia sob e sobre o solo se reduz. É por isso que a mudança no uso da terra tornase tão drástica para as reservas do elemento.”
Um dos efeitos da crescente concentração de CO2 na atmosfera da Amazônia já foi captado pelos cientistas. Segundo dados do projeto Rainfor, que une vários pesquisadores do Brasil e de outros países, nos últimos 20 ou 30 anos a floresta ganhou biomassa. Ou seja, não apenas as árvores “engordaram” mais do que o previsto como também novos indivíduos apareceram. “Recruta” é o nome dado às árvores que, entre um censo e outro, atingiram 10 centímetros de diâmetro e, com isso, entraram na contagem. O fenômeno – chamado pelos pesquisadores de “efeito de fertilização atmosférica de CO2”– demonstra que a vegetação tem se beneficiado da fartura de carbono disponível, realizando fotossíntese mais eficiente. Por outro lado, a mortalidade nas mesmas áreas também cresceu.
Com o aumento da biomassa, cedo ou tarde esse material morrerá, irá se decompor, aumentando ainda mais os estoques de carbono. “Isso significa que nos próximos vinte ou trinta anos os solos receberão um gigantesco fluxo extra, o que não ocorreu nas décadas passadas”, afirma Quesada. “Mas é preciso prestar muita atenção”, completa o pesquisador. “Hoje, a floresta é um sistema que funciona como um dreno de carbono; porém, trata-se de um sistema delicado, complexo e não definitivo. Pode mudar a qualquer momento.”
Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/materias/reserva-de-carbono?pw=1
O tesouro escondido na selva
A Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta, mas apenas 10% dela é conhecida pela ciência. A falta de pesquisas e as leis contra a biopirataria impedem que o Brasil aproveite o potencial de uso da flora e dos microrganismos na medicina e na indústria
Leandro Beguoci, de Manaus

Rainha da floresta Crianças brincam nas raízes de uma sumaúma, a maior árvore do Brasil, que chega a 60 metros de altura: 25% das substâncias usadas hoje no tratamento de tumores vêm de florestas tropicais
Em poucos quilômetros quadrados da Floresta Amazônica há mais espécies de plantas do que em toda a Europa. Há mais espécies de animais do que na América Central. Uma única árvore pode servir de lar a 1 700 tipos de invertebrados, que vão de formigas a aranhas, de abelhas a besouros. A Amazônia é a região de maior biodiversidade do mundo – mas nós, brasileiros, só temos uma pálida ideia dessa exuberância viva. Calcula-se que apenas 10% de todas as formas de vida que a Floresta Amazônica abriga já tenham sido estudadas e catalogadas. Essa falta de conhecimento científico sobre o bioma é uma das fragilidades amazônicas. O desconhecimento representa um obstáculo para a produção de riqueza a partir da floresta em pé. É impossível agregar valor ao que não se conhece. Estima-se que a flora, a fauna, as bactérias, os fungos e outros microrganismos da floresta guardem um enorme potencial para a produção de remédios e alimentos e para vários setores da indústria. A riqueza escondida, porém, não vale nada. É preciso mãos e cérebros para descobri-la – e é justamente isso que falta de forma crônica à Amazônia.
O câmpus da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto tem mais pesquisadores do que todo o estado do Amazonas. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem mais que o dobro do número de pesquisadores do Pará, o estado líder na região em matéria de cientistas qualificados. A Universidade de São Paulo tem o triplo de doutores de toda a Amazônia. A região é cenário de 18% das pesquisas em biodiversidade no Brasil, contra 36% da Mata Atlântica, embora essa última represente 2% da Amazônia. A falta de pesquisadores é agravada pela baixa qualidade dos cursos de formação de cientistas. Nenhum curso de mestrado ou doutorado de universidades amazônicas alcança a nota máxima, 7, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), instituição ligada ao Ministério da Educação. A maior parte leva 3, a nota mínima para não fechar as portas.
Um prédio erguido em meio às indústrias da Zona Franca de Manaus serve de símbolo do quadro desolador da pesquisa científica na Região Norte. A construção abriga o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), inaugurado em 2002 e dotado de 25 laboratórios para explorar o potencial da floresta. Há bons motivos para criar um centro de excelência em biotecnologia na Amazônia. O Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, estima que 25% de todas as substâncias usadas para tratamento de tumores no mundo, hoje, venham de florestas tropicais. Só que o CBA virou um elefante branco – ou, como zombam os amazonenses, uma anta branca. O centro já consumiu 67 milhões de reais e ainda não produziu resultado algum.
Após a inauguração do CBA, sua administração foi entregue provisoriamente à Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). Desde então, os seis ministérios responsáveis pelo projeto se perdem em discussões burocráticas tentando definir qual deve ser seu modelo de gestão. A primeira opção seria uma empresa pública só de pesquisas, com fins lucrativos, nos moldes da Embrapa. A segunda, um instituto de pesquisa combinado a uma instituição de ensino superior, como o Inpa, com objetivos puramente científicos. Para a Suframa, o CBA é uma batata quente. O órgão não sabe o que fazer dele nem tem autonomia para decidir seus rumos. “O Brasil precisa aprender a transformar pesquisa em dinheiro e o CBA pode fazer isso, mas não é a vocação da Suframa comandar um instituto de biotecnologia”, diz o economista Elilde Mota de Menezes, da Suframa. Enquanto isso, semiparalisado, o CBA se limita a fazer análises químicas para instituições de pesquisa e empresas particulares, subutilizando seus aparelhos modernos, avaliados em 20 milhões de reais. Um dos últimos trabalhos do órgão, acredite-se, foi avaliar a resistência ao clima de uma marca de bombons fabricados em Manaus.
Para tirar a Amazônia do limbo científico, é preciso também acabar com um mito tão arraigado quanto o do boto-cor-de-rosa – o mito da biopirataria. Segundo ele, ardilosos cientistas estrangeiros entram na floresta e roubam do país plantas, animais e microrganismos valiosos para a indústria farmacêutica, sem dar satisfação ao país. A partir de 2001, para se precaver contra a suposta biopirataria, um cipoal de decretos e normas burocratizou a produção científica e pôs uma série de obstáculos às pesquisas. “O mesmo governo que financia o pesquisador, com bolsas, desconfia dele e o trata como biopirata em potencial”, desabafa o paulista Thomas Lewinsohn, professor da Unicamp e um dos maiores especialistas brasileiros em mapeamento da biodiversidade. Para coletar plantas da floresta legalmente, um pesquisador, brasileiro ou estrangeiro, precisa de uma licença do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), uma autarquia ligada ao Ministério do Meio Ambiente. Para transportar as plantas que encontrar pelo caminho ao laboratório, ele necessita de uma segunda licença do mesmo órgão. A licença pode demorar dois meses para sair. Caso o cientista deseje estudar os usos potenciais da planta que coletou, terá de pedir uma terceira licença a outro órgão, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), formado por representantes de dezenove entidades – entre elas a Fundação Cultural Palmares e a Fundação Nacional do Índio. E quanto tempo demora essa licença? Só o cacique sabe. Não menos do que vários meses. Existem hoje 167 processos desse tipo parados no Cgen. Não é à toa que muitos cientistas desistem no meio do caminho, como o químico Lauro Barata, da Unicamp. “É impossível lidar com a burocracia federal na área de pesquisa”, afirma. “Um único parágrafo das leis te enlouquece.”

Pesquisa que vira dinheiro Cientista da Embrapa, em Belém, analisa o tucumã em laboratório. Estudos indicam que desse fruto pode ser extraído um azeite mais nutritivo que o de oliva
O resultado da caça às bruxas da biopirataria é a debandada de pesquisadores estrangeiros do país. O Inpa, tradicional parceiro de organismos internacionais, firmou apenas dois acordos de pesquisa entre 2002 e 2007. A retomada só aconteceu em 2008, quando foram firmados seis acordos de cooperação com órgãos de outros países. Diz Ima Vieira, ex-diretora do Museu Paraense Emílio Goeldi: “Os pesquisadores estrangeiros sérios, que estudam biodiversidade, foram embora. Cientista que vem ao país amparado por instituições respeitadas não é biopirata. É mais fácil um turista levar algo ilegalmente da floresta do que um pesquisador”. Muitos estrangeiros migraram para a Amazônia peruana ou para a Guiana Francesa, onde o cientista é tratado como parceiro, não como ameaça.
Boa parte do conhecimento que se tem sobre a Amazônia se deve aos estrangeiros. Um dos principais livros sobre a flora da região (e do Brasil) foi escrito no século XIX pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, em que são descritas 22 700 espécies de plantas. A maior coleção de plantas amazônicas está no Jardim Botânico de Nova York. Para saber se uma espécie é nova ou não, é útil recorrer aos americanos. Os dois projetos de mapeamento de biodiversidade da Amazônia mais importantes, hoje, têm participação de cientistas e organizações de outros países. A ONG americana Conservação Internacional é a principal patrocinadora de um estudo que visa a mapear a biodiversidade nas áreas tropicais do mundo. Seu projeto de longo prazo é saber como as mudanças no clima do planeta afetam as espécies. Outro projeto é o Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que pretende descobrir, enfim, quantas espécies existem na Amazônia e como elas se distribuem. Um de seus idealizadores é o biólogo australiano William Ernest Magnusson, de 57 anos, trinta dos quais atuando na Amazônia. “Nosso papel é dizer para o governo onde ele deve construir uma estrada e onde será mais vantajoso preservar a selva porque existem riquezas potenciais por ali”, explica Magnusson. Conhecer o bioma amazônico a fundo é um passo importante para preservar a floresta.

Vida de cientista A bióloga paulista Andressa Scabin, do Inpa, no Rio Negro, no município de Novo Airão, a quatro horas de carro e barco de Manaus: 100 dias por ano na floresta para pesquisar a biodiversidade de árvores de regiões alagadas
O governo incomoda mais que o mosquito
O entomólogo americano William Overal passou 33 dos seus 62 anos como funcionário do Museu Paraense Emílio Goeldi tentando entender por que a Amazônia tem a maior biodiversidade do mundo. Isso significa compreender por que há tantas espécies de abelhas, borboletas e formigas em trechos pequenos de mata e o que influencia sua distribuição. Seus artigos foram publicados nas principais revistas científicas do mundo. Em seu escritório repleto de animais invertebrados de cores e formas variadas, coletados em expedições que lhe custaram cinco malárias, Overal só perde a paciência quando comenta o tamanho da burocracia para fazer pesquisa no Brasil. “O governo precisa encontrar uma vocação melhor do que atormentar pesquisadores”, diz ele. “Se o governo usar o que nós sabemos, em vez de criar empecilhos para a pesquisa, ainda dá tempo de salvar a floresta.” |
O multiplicador de espécies
Graças ao botânico Michael Hopkins, nascido no País de Gales, o número de espécies conhecidas na área mais estudada da Floresta Amazônica, a Reserva Ducke, dobrou. Formado em Oxford, Hopkins vive no Brasil há dezesseis anos. Ele ajudou a reorganizar os herbários de Manaus e de Belém e, durante a tarefa, descobriu que muitas das plantas estavam classificadas com nome errado. Ele também é autor de uma pesquisa sobre a localização das áreas da Amazônia menos exploradas pelos cientistas, o que os ajuda a organizar expedições em busca de plantas raras e desconhecidas. A partir de 2001, Hopkins viu seu projeto de mapeamento da flora amazônica ser abortado por causa da legislação contra a biopirataria. O financiamento internacional para seu trabalho secou porque os investidores estrangeiros tiveram medo de ser criminalizados. “Há um vazio de vinte anos de pesquisas básicas sobre a flora”, diz Hopkins. |
Fonte: http://veja.abril.com.br/especiais/amazonia/tesouro-escondido-na-selva-p-072.html